Para alguns, o nascimento da “desejável” barba significa símbolo de maturidade. Já para outros, não passa de um adorno considerável à estética de seu próprio rosto — os homens são vaidosos, sim. E os bigodes então? Alguns senhores orgulham-se de tê-los, mas os mais novos podem achá-los até irritantes, chegando a raspá-los quase que corriqueiramente e sem perceber sua ação em frente ao espelho. O autor de O bigode, Emmanuel Carrère, de 45 anos, por meio da simples tarefa de raspar o bigode, quer levar seu personagem (um arquiteto francês sem nome) a um verdadeiro conflito psicológico, baseado na loucura e crise existencial. Crise existencial?! A do bigode, é claro! Após raspar o seu bigode de tempos, o arquiteto espera que os seus próximos opinem, sobre a sua nova aparência, favoravelmente ou não. E quando isso não acontece? Ou pior, e quando a própria mulher diz que ele nunca usou bigode? Por que então ele raspou seu bigode inexistente?
Conflitos, questionamentos, reflexões, tensões, busca de respostas — tudo isso em meio à paixão entre o casal (o arquiteto e Agnes) — são algumas das questões levantadas por Carrère. Mas parece que, pelo ponto de vista do protagonista, desnudo do velho companheiro, Agnes parece ter um importante papel em toda a história. Ela demasiadamente brincalhona e sensível ao mesmo tempo, sempre aprontou brincadeiras de mau gosto com amigos do casal, e agora mais uma vez com ele. Ela parece fingir que ele não raspou nada, apenas para se divertir com a situação dele estar louco. As tensões aumentam com o comportamento de sua companheira: ele acha que ela deve estar “tendo acesso de loucura”, precisando de tratamento, porém, ao mesmo tempo, ele começa a notar que seu problema de memória está aguçado, esquecendo detalhes e até mesmo questões importantes — como a morte de seu pai, que para ele estava vivo, parecendo isso a principal causa do problema de toda essa “rede de devaneios”:
— Você se chama exatamente Agnes?
— Sim.
Ela sorriu, tirando a franja que lhe caía sobre os olhos.
— Você telefonou para meus pais uns dois minutos atrás, dizendo que não iríamos para o almoço?
Ele sentiu uma certa hesitação.
— Para sua mãe, sim.
— Mas nós íamos almoçar na casa de meus pais, como todo domingo, não é isso?
— O seu pai morreu no ano passado — respondeu ela.
Ele permaneceu por um minuto de boca aberta.
O escritor estabelece um vínculo do verdadeiro com o falso, da loucura com a sanidade, como se o personagem estivesse acordando de sonhos jamais vistos, e isso é excepcional na maneira como o livro é escrito. A vida profissional e sentimental do “homem-raspado” parece não ser mais prioridade em sua mente — parece apenas latente o pensamento de como fazer para acabar com a “travessura” de sua esposa, que já se transformara em conspiração ao seu ver, ou talvez solucionar seu problema com o esquecimento. Carrère, autor de obras como Férias na neve (Rocco) e o romance La vie abrégée d’Alan Turin, faz de um problema pequeno e comum do homem, um ponto de partida literário para relatar um certo desequilíbrio da existência e confronto das verdades do ser humano.