Bicho também é gente, nessa Curitiba inumana

Há várias Curitibas dentro da grande Curitiba marqueteada, propagandeada e divulgada no Brasil
Roberto Gomes: “Temos muitos projetos a meta de lançar um por mês até 2001 “
01/11/2000

Há várias Curitibas dentro da grande Curitiba marqueteada, propagandeada e divulgada no Brasil. Para quem mora aqui, e se ufana de ser curitibano, as primeiras curitibas são frutos da mente doentia (?) de escritores malditos como Dalton Trevisan, ou de “estrangeiros” aqui aclimatados, como Cristóvão Tezza, ou de tantos outros. Nada mais normal que sejam os estrangeiros os grandes escribas e reveladores das peculiaridades escondidas nos becos, esquinas, paralelepípedos e petit-pavês soltos das ruas curitibanas. Roberto Gomes é mais um deles.

Seu último livro, Alma de Bicho (Criar Edições, 104 págs.), reúne 27 crônicas, todas escritas entre o ano passado e esse ano, tendo como tema principal a vida cotidiana. Mas não a vida de qualquer lugar, a vida de Curitiba, essa cidade esquisita e misteriosa, que não sei por quais cargas d’água fascina os turistas e quem vem morar aqui. (Nota do autor deste texto: sou curitibano, desde o nascimento, há 30 anos, moro aqui, acompanhei a transformação da pacata vila em metrópole, ainda que ache isso pura propaganda, e tenho direitos adquiridos para criticar essa cidade e seu povo).

Não há uma ordem lógica nas crônicas de Gomes. Elas poderiam estar dispostas de qualquer maneira. Em todo o caso, se você quer saber mais ou menos o que ele está pensando, comece com O curitibano — método de abordagem. Ali, Gomes já coloca no primeiro parágrafo: “Os Irmãos Villas-Boas correram riscos, mas tiveram êxito em se aproximar dos indígenas. Já com os curitibanos o risco é garantido, o êxito nem sempre”. É uma cidade que não se revela facilmente. Não são poucos os estrangeiros que só se relacionam com outros estrangeiros, sem nunca conseguir sequer passar do “bom dia” com um curitibano.

A cada crônica, percebemos o olhar atento de Gomes à capital das Araucárias. Em Pelas calçadas da vida, o protagonista é um personagem típico desta terra, o tropicão. Mas não qualquer tropeço, como bicada na quina da cama, ou ancinho no jardim. A tropicada na calçada curitibana, que de modelo só tem o que não deve ser feito. Na sua crônica, Gomes consegue sintetizar o drama humano que todo aquele que tropeçou em público já passou. Síntese da autocracia vigente, pois segundo Valmor Letzow, amigo dele, como os ricos só andam a pé na Barra, nos Jardins Paulistas, no Central Park ou em Paris, as calçadas curitibanas continuarão ali, legadas ao ostracismo. Conclusões de um estrangeiro, as quais o curitibano não chegaria nunca.

Ou você duvida que possa existir alguma conexão entre os guarda-chuvas, os bonés (ou, para os mais saudosistas, o chapéu), o socialismo e o capitalismo? Em outras cidades do mundo, não. Mas em Curitiba, cidade das quatro estações do mundo em um dia apenas, onde as pessoas praticamente já nascem de galochas e vêm agasalhadas com três ou mais blusas, no típico visual “cebola” (várias camadas), essa conexão é mais do que possível. Levante a mão quem nunca perdeu um guarda-chuva! Pois é, porque não então socializá-los. Onde você o deixar, outra pessoa irá pegá-lo. E você fará o mesmo em outro lugar. Socializar o guarda-chuva. E, claro, o boné (ou chapéu), símbolo máximo do capitalismo. Propriedade única, não repassável a outrem, nem compartilhável.

Os bichos de Gomes são personagens marcantes das histórias contadas por ele. A crônica que dá título ao livro, por exemplo, conta a história de Spala, canário com alma de Dizzy Gillespie. Nessa crônica, vemos qual é a opinião de Gomes sobre o assunto “bicho tem alma”? Em outras crônicas conheceremos melhor Spala, a sua companheira, seus descendentes e seu triste fim, Aika e Nasco, os huskys siberianos que habitam seu quintal, pacíficos a ponto de assustar quando são um pouco mais animais, e a pomba sem nome que chegou à sua casa e não foi-se mais. Não há dúvidas, para ele que os animais têm alma. E quem há de negar, quando muitos de nossos conhecidos parecem ter esquecido que eles próprios também têm uma, por falta de uso?

Mas não pense que Gomes se limita a Curitiba. Dostoiévski já dizia: “Canta tua aldeia e cantarás o mundo”! Gomes sabe a lição do mestre, e não limita seu texto e talento ao mundinho das araucárias. Há temas de reflexão universal, como a Dialética do lápis e da gaveta. A partir de uma tese sua, a de que certas coisas devem ser desinventadas, Gomes vai traçando os porquês de desinventar a gaveta, ou de elevar o lápis como uma das melhores invenções do ser humano. Mas ele não é pessimista. Para a gaveta, Gomes descobre uma utilidade, a de guardar textos supostamente literários. Se eles sobreviverem e mantiverem-se frescos após um período de repouso, publique-os.

A gaveta de Gomes, felizmente, não ficou muito tempo acumulando suas crônicas. Frutas do tempo atual, elas não poderiam ficar guardadas para não perderem seu viço. São como um beaujoulais noveau, vinho que deve ser consumido no máximo três meses após seu engarrafamento. Talvez algumas sobreviverão ao crivo do tempo, e poderão se transformar em chiantis encorpados ou bordeauxs frutados. Mas essa não é minha função, nem a dessa resenha.

Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho