Chama a atenção, logo de saída, a tradução do título do segundo romance de María Dueñas, no original espanhol Misión olvido, vertido para o português como A melhor história está por vir. Sem querer discutir o mérito da tradução (para o bem e para o mal dessa escolha), o que percebemos ao finalizar a leitura das trezentos e cinqüenta e duas páginas que aqui se nos apresentam é, para dizer o mínimo, frustrante. Terminamos a leitura do romance esperando a tal “melhor história” que estaria por vir e acaba não vindo. Mais do que isso, a sensação é a de um nítido desperdício de energia narrativa. Desperdício porque, de fato, nenhum dos insights mais criativos e instigantes que se anunciam no início da obra se aprofundam como talvez merecessem.
A narradora, Blanca Perea, sempre vitimizada — que jamais titubeia com sua voz onipresente —, parece encapsular-se no problema central de suas próprias mazelas existenciais, que se resumem às de uma mulher madura, professora universitária de renomada instituição madrilenha, mãe de dois filhos crescidos e independentes, que vê seu casamento de vinte e tantos anos entrar em colapso ao descobrir que o marido a está abandonando para viver com uma mulher mais jovem e que espera um filho seu. Assim ela descreve a sensação de cruel abandono que a aniquila:
Em dois minutos soube o que tinha que saber. Que Alberto havia ido embora de casa. Que a suposta solidez de meu casamento havia voado pelos ares nos primeiros dias do verão, que meus filhos já voavam por sua conta, que eu havia passado os dois últimos meses tentando me ajustar, desajeitadamente, à minha nova realidade, e que, ao ter de enfrentar o novo ano letivo, faltava-me energia para manter a cabeça fora d’água no mesmo cenário de todos os anos: para me agarrar uma vez mais às rotinas e responsabilidades como se em minha vida não houvesse ocorrido um corte tão limpo e certeiro, como o da carne atravessada por um pedaço de vidro afiado.
Tributo à Espanha
Diante da dor insuportável ela decide fugir de tudo, inscrevendo-se para trabalhar como pesquisadora em uma universidade norte-americana na Califórnia, precisamente em Santa Cecilia, no Norte, próximo a São Francisco. E só a partir daí, dessa necessidade de evasão por motivos pessoais, é que o enredo vai ganhando certo fôlego, pois acena às evidentes e fundamentais marcas hispânicas cravadas naquela região dos Estados Unidos e percebemos, ora de modo mais explícito, ora menos, vestígios pulverizados do que ela denomina “alma espanhola” impregnada nos tais “aromas californianos”, o que não deixa de ser um interessante tributo à Espanha (terra natal da narradora e também da autora).
Como professora espanhola visitante, apenas a título ilustrativo, faz com que os alunos aos quais ministra a disciplina Espanhol avançado através da Espanha contemporânea lembrem-se, por exemplo, para começar, do vasto elenco de nomes de santos espanhóis a batizar aquelas terras, como San Francisco, Santa Rosa, San Rafael, San Mateo, San Gabriel, Santa Cruz, Santa Clara, Santa Inés, Santa Bárbara, San Luis Obispo, San José. Além de todo o “santoral”, num exercício simples, estimula-os a recordar palavras hispânicas que povoam o mapa da Califórnia, tais como: Alameda, Palo Alto, Los Gatos, El Cerrito del Norte, Diablo Range, Contra Costa, Paso Robles, Atascadero, Fresno, Salinas, etc.
Indo além de simplesmente elaborar esse longo inventário um tanto quanto nacionalista, a questão ganha ares de aprofundamento histórico ao tentar desvendar a presença dos monges franciscanos espanhóis que começaram a exploração e colonização da Califórnia na segunda metade do século 18, fundando uma rede de missões (o que, de certa forma, justificaria o título do romance). Mas, ainda que aponte para essa indubitável presença e sua importância, a tessitura romanesca não explora muito bem o tema, deixando-nos a impressão de que algo não se cumpriu.
De modo análogo, a principal tarefa da protagonista, além de aproximar a cultura hispânica da americana, seria a de recuperar e organizar documentos de um emérito professor daquela casa, fadado ao esquecimento: o espanhol Dr. Andrés Fontana, que tendo saído da terra natal ainda muito jovem para lecionar Literatura Espanhola no continente norte-americano, acaba morrendo, sem de lá ter conseguido voltar por conta de toda sorte de vetos e censuras provocados pela Guerra Civil Espanhola, seguida dos flagelos da Segunda Guerra Mundial. Mas ao tentar se direcionar ao levantamento dos dados da vida do professor, a fim de, memorialisticamente, traçar o legado que ele teria deixado àquela universidade, a narradora conhecerá Daniel Carter, ex-orientando de Fontana, também acadêmico americano, renomado hispanista, por quem se apaixona.
Literatura e exílio
Outro tema instigante que se perde à medida que o romance avança, exageradamente atrelado aos estereótipos dos bastidores do mundo acadêmico, é o das relações entre literatura e exílio, uma vez que Carter teria passado um longo e determinante período de sua juventude em terra espanhola, a fim de levar adiante o Doutorado sobre um dos maiores autores espanhóis representativos do período, Ramon J. Sénder (nascido em Chalamera, Huesca, em 1901 e morto em San Diego, Estados Unidos, em 1982). Com efeito, embora frise a importância desse famoso escritor exilado — a princípio no México e em seguida, nos Estados Unidos (como vários de sua geração) — citando pelo menos duas de suas obras principais, Mosén Millán (1953) e Míster Witt en el Cantón(1935), a narradora desperdiça mais outra grande oportunidade de aprofundar — por meio de ricas investidas intertextuais que induzissem, por exemplo, a uma memória da literatura, à qual apenas acena — as contradições inerentes à condição do exilado.
Assim, embora tenhamos vários índices da presença hispânica na América, tanto na atuação dos franciscanos com suas missões quanto na do professor que não consegue voltar e ainda encarnada na figura máxima e exemplar do escritor espanhol, exilado por razões políticas, as “melhores histórias” que estariam potencialmente por vir não se realizam, uma vez que, como se girassem em círculos, as feridas existenciais da narradora — de certa forma, também “exilada” — assumem a batuta da partitura romanesca, regendo de modo muitas vezes piegas e enfadonho a série de clichês que povoam o texto. Estes se referem tanto aos arroubos localistas de uma hispanidade forjada quanto à idealização do retrato do jovem norte-americano, na verdade o herói romântico Daniel Carter, em suas aventuras espanholas, mais precisamente na Cartagena da década de cinqüenta, onde os contrastes culturais entre uma América desenvolvimentista e uma Espanha atrasada são mais do que explicitados.
Embora se assinalem as diferenças (e de fato, isso coincide com o período dos chamados “fabulous fifties” americanos, que refletiam o consumismo crescente no país pós-Segunda Guerra), estas passam a ser meramente descritas, sem interferir na consciência dos personagens, sem gerar conflitos sérios, dando-nos a impressão de que eles se movimentam leves, qual bonecos de papel, inseridos naquele plácido cenário hispano-americano.
O ponto final
Um dos clichês — cansativamente — mais reiterados ao longo do romance é o conselho “terapêutico” do amigo americano dado a Blanca diante do impasse por ela vivido quando a viagem de seu retorno a Madrid se anuncia, após o término da vigência do contrato de trabalho:
— Não quero ir, sabia? Não quero voltar.
— O que você não quer é enfrentar sua realidade.
— Provavelmente você tem razão […]
— Porque sempre é preciso pôr ponto final nas coisas, Blanca, mesmo que seja doloroso. Não é bom deixar feridas abertas. O tempo cura tudo, mas, antes, é conveniente se reconciliar com o que foi deixado para trás.
Talvez essa urgência em se fixar demasiadamente em receitas para superar os traumas da vida e seus infernos particulares, ecoando frases feitas de livros de auto-ajuda (“siga o seu coração e seja feliz”) é que desvirtue os bons propósitos de um romance que teria fôlego para se construir além das fronteiras — sempre suspeitas — que separam o literário das obras de mero entretenimento. Como tal, A melhor história está por vir cumpre seu intento na arte de entreter o leitor menos exigente, com uma narrativa simples e linear, a partir apenas de uma única voz, jamais problematizada, que, embora às vezes até insinue escapar do círculo vicioso da grande crise pessoal que a arrebata, apontando a temas interessantes como o da presença espanhola na América californiana ou o do exílio político, afinal se volta egocêntrica para o descabido da própria dor. O resultado que se obtém a partir desse tipo de iniciativa, abusando de investidas românticas melodramáticas que confundem literatura e catarse, facilmente digeríveis, acaba sendo um dos achados das fórmulas dos best-sellers contemporâneos.
Não surpreende, portanto, que os romances de María Dueñas consigam estar entre os mais vendidos da atualidade, tanto quanto ou até mais do que os de alguns de seus conterrâneos, como o madrilenho Javier Marías ou o catalão Enrique Vila-Matas. A diferença é que os dela caem no gosto das massas confortavelmente, sem a pretensão de perturbar ou inquietar o leitor como são capazes de fazer as obras daqueles seus colegas.