Benedetti: aquele que enxuga peixes

Mário Benedetti, uruguaio de Paso de los Toros, nasceu em 14 de setembro de 1920. É dono de uma obra invejável, a qual abarca diversos estilos literários, entre eles a poesia
Mario Benedetti, autor de “A trégua”
01/06/2001

Mário Benedetti, uruguaio de Paso de los Toros, nasceu em 14 de setembro de 1920. É dono de uma obra invejável, a qual abarca diversos estilos literários, entre eles a poesia. A sua obra poética ficou acessível ao público brasileiro com a publicação de Antologia Poética (Record, Rio de Janeiro, 1988) traduzida por Julio Luís Gelhen. De lá pra cá, houve o acompanhamento de sua poesia por traduções esparsas encontradas em jornais e revistas literárias. Contudo, chama a atenção o esforço que o Editorial Sudamericana, de Buenos Aires, fez ao editar Biblioteca Mario Benedetti, o conjunto da obra desse autor, em formato de livro de bolso. Dentre os volumes, está o de poemas Rincón de haikus (Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1999). Até onde sabemos, não se encontra a tradução, para o português, desse livro de hai-cais: uma forma que nos remete, entre tantos e importantes autores, ao Paulo Leminski (e aqui a minha homenagem … ainda que tardia).

Benedetti confessa, na introdução de Rincón de haikus, que não conhece o Japão nem a língua, tampouco considera-se um haijin (poeta japonês que escreve hai-cai). Preocupa-se em dizer que não quer imitar os haijins ou mesmo incorporar suas imagens e temas. Quer sim a ousadia de experimentar o hai-cai lançando mão de seus próprios sentimentos, inquietudes e paisagens, os quais não diferem demasiadamente do restante da sua obra poética. Nesse caso, ele acaba adiantando-se aos críticos para dizer: esse é o modo que sinto e pratico o hai-cai, ainda que vocês não o considerem como tal.

hijo sé atento
présale una toalla
al pez mojado

filho sê atento
empresta uma toalha
ao peixe molhado

Ao ler os 224 hai-cais presentes em Rincón de haikus, cai-se no rincão comum: o que esperar de um poeta de 80? Aguarda, o desavisado, o que antes já existira: o deslumbramento da mesmice ainda que bela e espantosa. Entretanto, seria tempo de resgatar o novo, ainda que os anos ceifem plantações de poesia e disso, haja resquícios espalhados, aqui e acolá, pela vida. O velho apanhador de recordações, recolhe de cócoras, esses gravetos de recordação para transformá-los em hai-cais e depois jogá-los na fogueira da sabedoria aquecendo-nos por luzes austrais.

A leitura de um hai-cai é crua, a reflexão dela resultante é um processo de lapidação das próprias emoções e que são tamanhas em Benedetti. Dentre tantas, torna-se possível identificar algumas, tais como:

A morte:

la muerte invade
de vez en cuando el sueño
y hace sus cálculos

los premios póstumos
se otorgan com desegana
y algo de lástima

a morte invade
de vez em quando o sonho
e faz suas contas

os prêmios póstumos
são dados com interesse
e algo de lástima

O desejo:

óyeme oye
muchacha transeúnte
bésame el alma

después de tudo
la maniquí no sabe
que es libertina

olha-me hoje
menina que passa
beija-me a alma

depois de tudo
a manequim não sabe
que é libertina

A velhice:

viejo curtido
ya no quiero pasar
por outro espanto

templo vacío
los viejos santos jugan
un solitario

velho curtido
já não quero passar
por outro espanto

velho curtido
já não quero passar
por outro espanto

A sabedoria:

la mariposa
recordará por siempre
que fue gusano

hay poca cosas
tan ensordecedoras
como el silencio

a borboleta
recordará para sempre
que foi lagarta

há poucas coisas
tão ensurdecedoras
como o silêncio

A lembrança:

desde el espejo
mis ojos no me miran
miran al tiempo

en cada historia
el perdón y la inquina
son estaciones

desde o espelho
meus olhos não me olham
olham ao tempo

em cada história
perdão e aversão
são estações

A melancolia:

ola por ola
el mar lo sabe todo
pero se olvida

setenta y nueve
años/ sententa y nueve
años/ y qué

onda a onda
o mar sabe tudo
porém esquece

setenta e nove
anos/ setenta e nove
anos/ e daí

O humor:

cuando me entierren
por favor no se olviden
de mi bolígrafo

narciso el nene
pidió a los reyes magos
un espejito

eran los brazos
de la venus de milo
los que aplaudian

el pobre dios
tan solo tan sin nadie
y tan sin vírgenes

quando me enterrarem
por favor não esqueçam
da minha caneta

o bebê narciso
pediu aos reis magos
um espelhinho

eram os braços
da vênus de milo
que aplaudiam

pobre deus
tão só tão sem nada
e tão sem virgens

… e o seu adeus:

al sur al sur
está quieta esperando
montevideo

al sur al sur
está quieta esperando
montevideo

al sur al sur
está quieta esperando
montevideo

e aqui termino
sem fazer sombra a nada
nem me descuidar

… quanto a mim? Sem muito a dizer.

Marco Aurélio Cremasco

Nasceu em Guaraci (PR). Tem publicado os livros de poemas Vampisales (Editora da UEM, 1984), Viola caipira (edição do autor, 1995), A criação (Prêmio Xerox/Livro Aberto, Editora Cone Sul, 1997), fromIndiana (edição do autor, 2000), As coisas de João Flores (Editora Patuá, 2014); o livro de contos Histórias prováveis (Editora Record, 2007) e o romance Santo Reis da Luz Divina (Prêmio Sesc de Literatura, finalista do Prêmio Jabuti, Editora Record, 2004).

Rascunho