Bem-vinda ao matadouro

"A pequena outubrista", de Linda Boström Knausgård, é um romance cheio de ódio e autopiedade, no qual abusos da psiquiatria são expostos
Linda Boström Knausgård, autora de “A pequena outubrista”
24/02/2021

Se suínos agitados podem ser tranquilizados por meio de choques elétricos, por que não fazer o mesmo com seres humanos — aqueles à beira do abismo, fragilizados, que em países como a Suécia podem ser coercitivamente submetidos à eletroconvulsoterapia? No romance A pequena outubrista, Linda Boström Knausgård recorda sua própria experiência com esse tipo antiquado de tratamento, ao qual ela foi submetida em diferentes períodos entre 2013 e 2017.

Para já tirar o elefante da sala, a resposta é sim: trata-se da ex-esposa do Karl Ove Knausgård, autor da série de seis livros Minha luta. Dentro dessa saga autobiográfica, é o segundo volume (Um outro amor) que explora a relação do norueguês com Linda — do encanto inicial à derrocada do relacionamento, bastante motivada por razões que a própria mulher aponta em A pequena outubrista — sua bipolaridade, apatia, ansiedade e outros comportamentos que, gradualmente, afastaram-na do marido e dos filhos. É uma dupla triste de narrativas, que talvez possam ser encaradas como um conjunto: cada qual sugerindo uma versão dos fatos, mas ambas tendo o mesmo fecho, bem distante de um happy end.

O tema central do livro de Linda não é o casamento, mas a barbárie terapêutica à qual um ser humano ainda pode ser submetido em alguns países — e todas as suas consequências. Qual é o sentido de um tratamento que leva o paciente à perda de memória e, por consequência, a uma espécie de dissociação da própria realidade? Espera-se que a pessoa seja curada ou apagada? A última opção soa bizarramente mais fácil, e tudo no livro parece se encaminhar por aí. Se você começa a esquecer de si mesmo, é necessário recriar sua própria realidade. A ficção pode ajudar.

Fábrica e memória
A eletroconvulsoterapia (ECT) foi utilizada pelo neuropsiquiatra italiano Ugo Cerletti (1877-1963) em 1938. Ao causar uma espécie de convulsão generalizada no corpo do paciente, o tratamento gera euforia — o que, por si só, pode significar uma lesão cerebral. Mas se deu resultados positivos, mesmo os médicos não fazendo questão de tentar esclarecer o funcionamento da coisa toda para o paciente, do que reclamar?

Quando não dá muito certo, e você acaba com pupilas de tamanhos diferentes por semanas, e sua memória começa a sumir, e os nomes dos seus filhos se tornam estranhos, a culpa é sua. Talvez você não esteja se esforçando o bastante para melhorar. Talvez o ideal seja mais um ciclo de tantas sessões de choques no cérebro, presa a uma maca nos subterrâneos da “fábrica” — como é chamada a sala na qual a ECT acontece, sempre depois de o paciente responder às perguntas de praxe: “Você comeu ou bebeu algo hoje? Você tem algum dente frouxo?”.

Esse tom raivoso e questionador, para que fique claro, é o da própria Linda (protagonista do livro): a obra parece insurgir contra os métodos psiquiátricos radicais, ao mesmo tempo em que a autora é moída pela autopiedade e tenta repassar períodos decisivos de sua trajetória até aquele lugar obscuro. Um dos mais marcantes envolve um homem que ela amou quando jovem e do qual ouviu, após breve convivência: “Estar contigo é uma aposta que ninguém seria capaz de recomendar”.

Se já não soa ruim o bastante, as memórias envolvendo o pai — ele mesmo um homem deprimido que passou por internações — complementam a construção dessa desgraça psicológica:

Eu nunca contei sobre o fato dele ter nos perseguido e quase nos matado daquela vez que acendeu gás e de ele bater na minha mãe e nos aterrorizar. Eu nunca contei sobre o que ele fez comigo quando eu era pequena e estava sozinha com ele e com o meu irmão no interior, pois aquilo eu não podia contar a ninguém.

Voz narrativa
O “eu”, como dá para notar, é bem acentuado. Se é um problema de tradução ou não, está fora do meu alcance responder. De qualquer forma, olhando para a obra como ela foi entregue ao leitor brasileiro, essa repetição quase incômoda não deixa de ser uma chave de leitura interessante: tratando-se de uma voz que parece buscar reconstruir a si mesma, é natural que exista esse profundo voltar-se para si mesma. O foco, no entanto, é sempre nas coisas ruins. Esses retornos parecem reconstituir todos os passos até uma catástrofe, sem jamais buscar alguma luz — o que talvez fosse impossível devido ao estado mental da autora:

A escuridão morosa da depressão, o nada e a morte de olhos abertos da depressão, é isso que me aguarda quando chego ainda mais ao fundo. Lá onde não existe palavra alguma, consciência alguma, apenas esse sono arrastado de manhã, à tarde, à noite e a angústia que cerca cada célula.

Nota-se que a jornada do leitor é mente da personagem adentro, e é aí que reside o ponto forte do texto. A escrita em si traz manobras técnicas acertadas, mas sem grandes surpresas: fazer com que determinados trechos emulem a confusão da qual fala a protagonista; idas e vindas temporais, para reproduzir a tentativa de Linda reconstruir sua identidade; alguns trechos mais oníricos, que dão uma amostragem do torpor mental da narradora e servem para inserir reflexões simbólicas — uma dessas fantasias, por exemplo, mostra ela se envolvendo sexualmente com um enfermeiro atraente e de pulso firme, isto é, algo como a paciente frágil sendo dominada por uma figura poderosa e redentora.

A fragilidade, aliás, parece enraizada no imaginário da personagem. A coisa é muito sobre autopiedade, mas a narradora sabe disso. Sabe mas não consegue se libertar, em uma combinação que a torna complexa. Para isso, a figura da irmã Maria — uma freira, funcionária da clínica psiquiátrica — tem papel central. Um dos esporros que Linda toma é o seguinte:

— Vou dizer mais uma vez: você não é uma pessoa digna de pena. Não pretendo ficar aqui repetindo para você tudo o que você tem, como você é uma pessoa privilegiada, mas tenta pensar nesse sentido. Essa apatia é ridícula. Você apenas degrada a si mesma. Agarre-se em algo dentro de você mesma para demonstrar que você quer sair daqui.

Questão crucial
Esse “algo dentro de si” ao qual se refere a irmã Maria existe, mas não parece ter sido alcançado por Linda. Trata-se, talvez, do que representa a pequena outubrista da qual fala o título: a figura de uma criança que faz parte de algo maior desde cedo, pioneira, com um olhar capaz de se destacar mesmo em uma foto repleta de outras pessoas. Uma criança com voz ativa e postura altiva, ciente de que tem um dever para com a revolução de seu país — e que, portanto, seu próprio “eu” não é o centro das atenções.

No caso das outubristas, que formavam uma espécie de aliança jovem em prol da alma e espírito soviéticos, lá nos idos do século 20, o foco era o melhor para a nação em que estavam inseridas. Linda parece ter adorado essa noção de ser uma devota da coletividade, mesmo não tendo conseguido fazer parte de um todo maior, e sim ter escolhido um caminho mais comedido — voltado às letras, pelo menos desde quando conseguiu uma vaga “naquela merda de escola desgraçada” para escritores.

Apesar das catástrofes, e de Linda moer e remoer tudo o que poderia ter sido não fosse o que é, fica claro que ela tentou nortear a existência por meio da escrita. Se tudo deu errado em sua vida, e a narrativa sugere que sim, a autora — que é também a personagem, guardadas as ressalvas que o gênero autoficcional pode suscitar — tenta se apoiar na fabulação: “Eu sempre soube que era capaz de escrever como se fosse uma questão de vida ou morte”.

A pequena outubrista
Linda Boström Knausgård
Trad.: Luciano Dutra
Rua do Sabão
255 págs.
Linda Boström Knausgård
Nasceu em 1972, na Suécia. Estreou com um livro de poemas, em 1998, e publicou três romances. Ganhou prêmios nacionais e foi traduzida para mais de 13 idiomas. A pequena outubrista é seu primeiro livro lançado em português.
João Lucas Dusi

É autor do livro de contos O grito da borboleta (Penalux, 2019).

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