Confesso: se ainda não tinha escolhido O coração é um caçador solitário como alvo potencial de uma resenha, foi porque o título me parece incrivelmente brega. Ler no posfácio que o título nasce de um poema de William Sharp não diminuiu em nada essa impressão — mas Giovana Proença Gonçalves tem razão completa ao dizer que a obra de McCullers é digna de uma posição de mais reconhecimento no cânone.
O coração… tem como ponto de partida uma história simples, envolvendo o mudo e ironicamente nomeado John Singer, cujo único amigo é seu colega de quarto, o também mudo Spiros Antonapoulos. Após uma doença, o comportamento de Antonapoulos muda drasticamente. Episódios de roubo e micturição pública são só algumas das atitudes que toma antes de ser internado num hospício em outra cidade, apesar dos protestos do amigo. Singer passa a não conseguir pagar o espaço que dividia com o grego, e busca um quarto menor, onde possa morar sozinho — sempre guardando dinheiro para visitar o amigo e lhe levar presentes durante suas férias, ou em qualquer ocasião em que isso se torna possível. Pouco depois de se mudar para esse quarto, Singer passa a receber visitas dos outros quatro personagens principais do romance, guiados por uma busca já anunciada no título que, apesar de minha impressão inicial negativa, preciso reconhecer: encaixa-se ao conteúdo do romance com justeza incomum.
Caça solitária
A posição de Singer no romance é curiosa. Seu silêncio, raramente quebrado por mensagens curtas escritas em pedaços de papel, começa a atrair outros personagens, que projetam suas próprias opiniões em Singer, imaginando que, se pudesse responder, ele concordaria com o que dizem. Aos olhos deles, Singer se torna um grande e inteligente amigo, dono de uma empatia incomum.
Singer, como consequência, se torna, ao mesmo tempo, o personagem mais central e mais raso do romance. As histórias que o envolvem, na maior parte do tempo, não são suas. Suas opiniões são neutras o suficiente para que ele simplesmente mantenha a mesma expressão na maior parte do tempo, diante de revelações e falas emocionadas de seus interlocutores.
Ele ouve os desabafos de Mick Kelly, uma pré-adolescente que conta seus sonhos de se tornar musicista; os sermões embriagados de Jake Blount, um trabalhador que viaja pelo país tentando divulgar o comunismo (coisa que, se não era tão respeitada num Estados Unidos pré-Segunda Guerra, não era nem de longe tão execrada quanto seria durante a Guerra Fria); e os discursos sóbrios de Dr. Copeland, um médico negro que busca não só a igualdade étnica, mas também luta contra a desigualdade econômica e sonha em converter mais pessoas ao comunismo, embora tenha falhado em fazê-lo com seus filhos — um dos quais se chama Karl Marx.
Singer ouve tudo isso, e continua exatamente o mesmo, nunca expressa qualquer opinião, nunca muda em um átimo seu comportamento. Em qualquer capítulo que não gire sobre ele, a função de Singer é trazer à tona as falas de Blount, Dr. Copeland e Mick Kelly. Se tivesse emoções e opiniões fortes, afinal, Singer não seria tela em branco apropriada para a expressão desses outros personagens. Além disso, sua posição, que justifica também seu nome, se associa à ideia da “fuga” na música, que, nos explica Giovana Gonçalves no posfácio, “é um tipo de composição musical na qual um tema é repetido por múltiplas vozes”. Singer é a voz inicial, o tema que os outros reproduzirão, mas também o lugar vazio gerador do eco. Por tudo isso, fora de capítulos dedicados a si, ele permanece unidimensional e soa como pouco mais que uma ferramenta narrativa.
O quarto visitante de John Singer é o dono do café localizado no bairro, Biff Brannon — mas Biff, ao contrário dos outros, não fala muita coisa ao entrar em seu quarto. Pelo contrário: ele nem sequer entende o que os outros veem em Singer. Frequentemente vemos Biff no balcão de seu café, ouvindo de relance as conversas, vendo as relações que se formam a seu redor, e exibindo grande empatia e cuidado com seus clientes. Biff é um homem sensível, em que a autora parece sugerir certos traços maternos, e fiquei com a impressão de que ele desejava ser o verdadeiro ouvinte, queria que os outros desabafassem com ele os lamentos que Singer ouvia — mas por mais que ele se mostrasse aberto, isso não acontecia. Sua relação com Singer era de curiosidade, e ele não fazia mais que observá-lo em silêncio, como quem tenta perscrutar um segredo.
Cada um desses personagens é o centro de seu mundo, e os diferentes capítulos adotam, alternadamente, seus pontos de vista, isolados porque os próprios personagens são separados uns dos outros, com pouquíssimos pontos de contato. Ao contrário da história um tanto estagnada de Singer, a trajetória dos outros avança, eles passam por experiências impactantes e não saem os mesmos delas, ganhando complexidade e interesse. Se o título afirma que O coração é um caçador solitário, o romance parece dizer que ultrapassar essa solidão é nada menos que impossível.
Cinismo
Em seu posfácio, Giovana Gonçalves afirma existir certa discussão sobre O coração… no que diz respeito a determinadas interpretações possíveis. Seria um livro completamente realista, com sua descrição precisa do mundo em que os personagens viviam e da época pouco antes da Segunda Guerra? Ou a obra pretende, em vez de mostrar um retrato exato da vida naquele tempo, apenas simbolizar certas características da existência humana? Pessoalmente, parece-me impossível acreditar na primeira opção.
É verdade que McCullers descreve com exatidão diversos elementos concretos da vida de sua época. Suas descrições, além de exatas, são frequentemente belíssimas e não raro emocionantes — ficaram comigo trechos sobre a infância e o início da adolescência de Mick Kelly, e sua descoberta do amor pela música; a pequena transformação de Biff Brannon, que após a morte da esposa começa a desenvolver um gosto por decoração, perfumes, costura, e se deixa experimentar coisas tidas como femininas com naturalidade; a caminhada entorpecida de um Jake Blount que recupera a consciência depois de uma terrível tragédia; o discurso natalino de um Dr. Copeland que usa todos os seus recursos para despertar a consciência de classe e de cor entre os seus. Por outro lado, o resultado dessas diferentes histórias me parece hiperbólico demais para ser considerado realista. Isso pode soar como uma crítica negativa, mas não é. Os diferentes elementos se casam com maestria no todo elaborado pela autora, e as relações são efetivas de uma maneira que impressiona, considerando que ela tinha apenas 23 anos quando o romance foi lançado. Mas a maneira como esses elementos se conjugam parece revelar uma visão bastante cínica e pessimista das relações humanas.
Solidão
Se alguma palavra no título do romance recebe mais destaque que as outras, é: solitário. A solidão dos corações que formam o romance é avassaladora. Não parece existir qualquer possibilidade de aproximação. Singer passa horas e horas por semana, ao longo de anos, ouvindo essas pessoas que o visitam, e nenhuma delas parece se tornar uma verdadeira amizade. Se os outros o veem como amigo, é porque projetam nele um pouco de si próprios. O tema central do romance, já indicado no título, é essa solidão profunda do ser humano, a distância insuperável entre cada um de nós. Seria possível interpretar a relação dos outros personagens com Singer como uma sugestão de que toda a percepção de proximidade verdadeira não passa de ilusão. Outra interpretação seria que só valorizamos nos outros aquilo de nós mesmos que vemos neles. Não só isso, mas somos condenados a caçar, incessantemente, essa proximidade impossível.
Singer continua visitando no hospício um Antonapoulos que não dá atenção alguma ao que ele diz na linguagem de sinais, e se alegra com sua visita apenas porque assim recebe presentes. Mick Kelly, aos poucos, se aproxima da vida e das responsabilidades adultas, o que, somado às dificuldades financeiras de sua família, faz com que se esqueça de seus sonhos com a música. Jake Blount e Dr. Copeland passam a vida tentando transmitir suas mensagens de igualdade pelo mundo, mas nunca conseguem convencer sequer uma pessoa (outra hipérbole que simboliza a mesma impossibilidade de conexão). Mesmo quando se conhecem, mesmo quando, após uma longa discussão, ficam sabendo o quanto suas ideias têm em comum, o quanto envolvem a luta por comunidade e comunismo — os dois não conseguem se aproximar.
Ninguém consegue diminuir a distância que o separa dos outros, ninguém consegue deixar para trás a solidão, e toda conexão parece frágil e ilusória. Ficamos, então, como Biff Brannon, esperando e torcendo para que alguma conexão seja possível, tentando conseguir nossa pequena parcela de proximidade, enquanto observamos, um por um, os personagens que saem pela porta para nunca mais voltar.