Aos 13 anos, começou a construir sua biblioteca. Três anos atrás, ao completar 63, entendeu que era o caso de dar por encerrado o projeto cinquentenário. Um bom número redondo — 50 anos — para circunscrever o ciclo de existência de sua biblioteca, do nascimento à morte e à transfiguração. Já havia tempo que ela se transformara num amontoado de livros, parecendo os fundos dos sebos ou livrarias antigas que ele tanto amava, na sua e em outras cidades. Amontoado caótico, espaço demarcado por trilhas entre pilhas de livros, por entre as quais ele se esgueirava, sentindo o roçar dos papéis nas suas roupas e pele. Algumas pilhas faziam sentido temático, davam testemunho de prévias operações de busca, eram esboços de subseções.
Antes de assumir a importância existencial que finalmente assumiu, o encolhimento forçado desse amontoado tinha motivação prosaica. Falta de espaço. Nessa fase, o caos vinha sendo combatido em luta quase cotidiana, nas horas e dias em que não havia trabalho ou obrigação social. Ao mesmo tempo, novos livros chegando, diariamente, semanalmente, pelo correio, comprados em livrarias, encomendados na Estante Virtual. Encolhia aqui, amontoava ali. Sístole, diástole. Se não é organismo vivo, a biblioteca pessoal é prótese. Assim como os óculos, o computador, sua grafomania — a escrita surgindo nas entrelinhas, nas margens da leitura.
Conclusão definitiva: o projeto de possuir uma imensa biblioteca pessoal só funciona para vidas senhoriais. Quem pode manter uma biblioteca num apartamento urbano de dois quartos, mesmo vivendo sozinho, como ele? Constatou que não bastava encolher o amontoado. Era preciso questionar a ideia mesma de acumular livros para si. Afinal de contas, alguns dos momentos mais marcantes de sua formação primeira tinham se passado em bibliotecas públicas. A utopia da biblioteca só sua já tinha sido relativizada por sua própria experiência idílica em bibliotecas públicas. Ele sempre admirara de longe, de passagem, os tipos solitários que permaneciam dias inteiros na Biblioteca Nacional, na do CCBB, em tantas outras, forjava uma identificação apenas imaginária com eles. Como se não houvesse outra vida.
Quando jovem, ele percorria como um beija-flor as estantes da grande biblioteca de sua universidade e levava para sua mesa a pilha de livros que folhearia ou leria durante toda a tarde. Leitura de beija-flor. Gostava de dicionários de filosofia e livros de poesia. Copiou Jules Laforgue inteirinho num caderno. Na biblioteca do curso de inglês, andara lutando com os poemas e exegeses da obra de T. S. Eliot e foi por aí que mergulhou nos franceses. Gostava também de livros de história, dos grandes álbuns de capa dura cinzenta com fotos de expedições pelo interior do Brasil, era aficionado da Brasiliana toda.
Na errância das estantes, tentava digerir o Cabral de A educação pela pedra. Começava a gostar de Drummond. Apesar da estranheza, deslumbrou-se com Guimarães Rosa, por causa dos causos. E foi com Metalinguagem, de Haroldo de Campos, que sentiu encorpar-se, em seu quarto, o projeto de biblioteca pessoal e a necessidade de ir além dos amados Erico Verissimo, Jorge Amado, Fernando Sabino. Da biblioteca de seu pai surrupiara, aos 14 anos, as biografias de Marx e de Sartre, escritas por Leandro Konder e Gerd Borheim, numa coleção de bolso de José Álvaro Editores. Ele as levava clandestinamente para a aula do quarto ano ginasial (era na ditadura) e as lia escondido, junto com sua melhor amiga. Foi também quando descobriram Hamlet e Brecht, em impraticáveis traduções portuguesas. Na rede, na cama, no sofá, no clube, nas longas viagens de ônibus pela cidade, na espera do filme da cinemateca, dava-se a devoração contínua de romances. A outra vida pulsava na pele, nos intervalos.
Passadas cinco décadas desde aquele tempo idílico, eram quantos? Cinco mil, seis mil livros? Nunca chegou a contá-los. Para agravar, em meio à dialética da ordem e da desordem, eles foram submetidos, num curto espaço de tempo, a mudanças radicais de local, pelas circunstâncias de vida de seu dono. De um apartamento residencial que ameaçava transformar-se em claustrofóbico depósito de alergias foram transferidos para uma sala comercial. Desta foram para outra. E enfim a divisão do acervo em dois, a aproximação do momento que teria que ser transfigurador, depois dos anos de nomadismo, de entra e sai em caixotes, de tantas triagens, doações, vendas a sebos. Restavam uns 3 mil livros ou mais. Parte voltou ao apartamento de que tinham saído, outra parte foi hospedada no apartamento da mãe.
No decorrer do período nômade, viveu mais de uma vez a experiência e as emoções narradas por Walter Benjamin no cultuado Desempacotando minha biblioteca. Empacotar, desempacotar, reempacotar, redesempacotar. Existirá alguma pessoa que seja desse mundo de livros, leitura, letras, que não busque ou encontre no pequeno texto de Benjamin o espelho de si próprio, algo de si que de repente é tudo que se tem? Ah, os caixotes de livros, com suas classificações. Enchê-los e esvaziá-los tornou-se uma das maiores alegrias de sua vida, na fronteira entre o crepuscular e o jovial empedernido habitada pelos sessentões de agora. Pois como afirma ousadamente Miguel Sanches Neto, em seu icônico Herdando uma biblioteca (2004), frequentemente mostramos gostar mais dos livros que das pessoas que nos cercam.
Essa era a impressão que seu secretário tinha. Teu grande amor são os livros, dizia. Pior que amar os livros acima de tudo, é não amar nada nem ninguém, ele retrucava, cruel. Na verdade, era com hesitação que endossava ou enunciava essa crueldade intelectual. Talvez por isso nunca tivesse escrito um romance. Ou conto, que fosse. Feito beija-flor, escrevia poemas curtos, encadeados em séries. E os textos de encomenda, da profissão. E a grafomania, de antigos diários e cartas, de contemporâneos posts e mensagens.
Escrever em terceira pessoa tendo por mote o tema de Miguel Sanches Neto era uma forma de homenagear e celebrar a existência do Rascunho em seu vigésimo aniversário, celebrar a figura de Rogério Pereira, homenagear o veio paranaense na literatura brasileira. A certa altura, em seu livro, Miguel lembra o poeta José Paulo Paes, num momento de vida que se assemelhava ao seu próprio, agora: “José Paulo era um homem de idade, tinha uma biblioteca vasta, estava aposentado e guardava um desejo de lidar com coisas duradouras”.
Lidar com as coisas duradouras. Era chegada a hora do desapego final. Para ele, diferente do que indicava o trecho sobre Paes, os livros duradouros seriam os que ficariam após a transfiguração de sua biblioteca vasta em coleção sucinta de livros. O que é o inestimável? Na curva (surpreendente, inesperada, inquietante) dos 63, parcialmente aposentado, era hora das derradeiras, longas, sofridas despedidas. Cada livro, individualmente, merecia um abraço, um exame, uma refolheada, a leitura de trechos, sobretudo a lembrança de sua aquisição, como em Benjamin.
E o veredito: vai ou fica? Quantos ficarão, afinal? Uns mil? Que proporcionassem alegria à memória. Alegria não sublime, nem sentimental, às vezes culposa. Alegria material, da pele dos dedos roçando o papel que se desfaz. Alegria da autobiografia. Era o que restava. Mas não se tratara sempre disso? Todos os seus ontens revivendo em cada livro redescoberto, no gozo solitário, barthesiano, da solidão com livro. Mais vale a coleção sucinta que a infinita Biblioteca de Babel. Qual o valor ou sentido de possuir uma bela coleção de livros sem compartilhar seus tesouros com amigo/amiga amante de leituras?
A biblioteca em derelicção era talvez sintoma da falta de um projeto intelectual claro. Codinome beija-flor. Porém o labor de domesticar o caos para colocá-lo em caixas efêmeras, aos poucos revelou que, meio sem sentir, ele tinha amealhado novas subseções temáticas, que poderiam ocupar vistosas estantes na futura biblioteca transfigurada, resultante do que sobrasse do desapego final. Somente elas podiam indicar novos caminhos de pesquisa, de criação. Era preciso dar a si próprio a chance de um novo começo, um terceiro lance em sua vida, uma nova prótese.