Sabe-se que todo texto literário se refere, em última instância, ao humano, discreto ou demasiado, sejam seus personagens pessoas, reais ou fictícias, uma pedra que houve confidências numa fazenda da Bahia, bois que narram histórias, uma jovem cadela ruiva de nome Kaschtanka ou um inseto em profundo estado de rejeição. Mas há um gênero que nos atrai por falar de pessoas reais, mensuráveis no tempo-espaço da história e dos afetos, cujos perfis localizam-se num lugar qualquer entre um esboço e uma biografia.
As linhas acima vêm a respeito de um livro singular: Sobre pessoas, do ficcionista Antônio Torres, baiano de Junco, hoje Sátiro Dias, um dos principais nomes de sua geração — a que despontou ruidosamente nos idos dos 60 —, autor de romances consolidados, quando não consagrados, em nossa história literária, a exemplo de Essa terra e Um cão uivando para a lua, aos quais se acrescem títulos mais recentes, como O nobre seqüestrador e Pelo fundo da agulha.
Misto de crônica, memórias, reminiscências e homenagens, como bem definiu André Seffrin, nas orelhas do livro, Sobre pessoas tem sabor especial por falar de personagens reais da nossa história — sejam artistas e escritores do século 20/21, sejam figuras mais ou menos nebulosas, de outros tempos, mais antigos, cujas memórias são revisitadas e redimensionadas. Exemplo: o eminente político e diplomata João Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, muito bem retratado no capítulo Vencedores e vencidos: histórias da nossa história. Capítulo, diga-se de passagem, em que Torres, com recursos de exímio esgrimista, digo, ficcionista, procura redimir o Rei Dom João VI de sua triste e injustiçada imagem de covarde bufão. Retrata ainda personagens pusilânimes, como o governador Francisco de Castro Morais, apelidado de Vaca, condenado ao degredo por entregar covardemente os bens públicos e privados aos invasores franceses do Rio de Janeiro, em 1711.
Saltando de um século para o outro, contextualizando seus personagens e situando-os entre tantos outros do seu tempo, Antonio Torres oferece ao leitor, em textos curtos e ágeis, uma instigante rede de relações, dramas, amores, paixões, intrigas e imensos talentos, num painel fragmentário da nossa história — política, literária, afetiva — com olhar arguto e, devemos dizer, quase sempre profundamente compreensivo.
A generosidade é uma marca significativa desse livro. Nele, o autor salienta o lado mais luminoso de seus personagens, mas não hesita em expor, aqui e ali, explicitamente ou nas entrelinhas, algumas de suas idiossincrasias — ou, mesmo, infâmias. É o caso do festejado Jorge Luis Borges, cujo reacionarismo e abjeto preconceito é exposto no texto O lado infame do genial Borges. Nele, Torres, referindo-se ao livro Borges, o mesmo e o outro, publicado em 2001 pela Escritura, expõe declarações do autor de Ficções, quando se refere aos militares argentinos como “cavalheiros” e “senhores bem intencionados”, que “vão salvar o país da destruição” (isto em plena ditadura militar argentina, nos anos 70, uma das mais sangrentas de todo o continente); declara desprezo aos escritores latino-americanos (“Eles não existem. Não existe nada na América Latina. O continente inteiro é um romance mal escrito”) e à raça negra, segundo Borges, “inferior em tudo”. “A raça negra nada fez. Se não existissem negros, a história do mundo não mudaria em nada.”
Trata-se, no entanto, de uma exceção. Na maior parte do livro, o autor prefere mesmo traçar perfis brilhantes e generosos de escritores e artistas como Fernando Sabino, João Saldanha, Murilo Rubião, Dalton Trevisan, João Antônio, Rubem Braga, Tônia Carrero, Juan Rulfo, Othon Bastos, Márcio Souza, Ignácio de Loyola Brandão, Miles Davis e Tom Jobim. A partir, geralmente, de encontros fugazes, e, portanto, sem qualquer pretensão de retratar, de forma definitiva, esses autores.
Os destaques vão para quatro textos memoráveis: um já antológico, no qual rememora dois encontros com Glauber Rocha, em 1964, quando ambos estavam ainda na casa dos vinte anos (acrescido de um resumo da entrevista que fez, então, com o cineasta para uma “revisteca” paulista chamada Finesse, no dia da estréia de Deus e o diabo na terra do sol, em São Paulo); o que retrata o encontro do autor com o poeta português Alexandre O’Neill, em Lisboa (acrescido de alguns poemas do autor, morto em 1986, aos 62 anos); o Roteiro sentimental de um leitor de Jorge Amado, no qual retrata a lendária simplicidade e generosidade do romancista baiano com os escritores mais novos; e um brilhante perfil de Monteiro Lobato (Idéias de Jeca Tatu).
Primorosas, também, as escassas linhas sobre a infância do autor em Quando o Natal não tinha Papai Noel — texto emblemático do tempo mítico que alimenta a ficção de Torres e que tem no não-pertencimento a chave para a sua decifração. Eis, como diz Seffrin, citando um poeta, o “baú de espantos” deste autor que não cessa de nos surpreender.