Bastidores de um prêmio literário

Uma amostra de como pode ser a avaliação dos inéditos enviados aos concursos literários
01/09/2004

Antes de contar, um preâmbulo: vivi no início de 1986 o que chamei de meu “momento García Márquez”, quando duas editoras disputaram os originais do meu romance A idade da paixão. Lançado pela Editora José Olympio, o livro ganhou o Prêmio Jabuti de melhor romance daquele ano (Sérgio Sant’Anna recebeu o prêmio de novela e Armando Freitas Filho o de poesia). Com boas críticas, o romance logo esgotou a primeira edição… e parou por aí. Jamais relançado por circunstâncias várias, está morto há quase 18 anos e nem em sebo se acha. A feiosinha estatueta que simboliza o cascudo bicho acumula poeira em minha estante e de tudo restou a pequena glória da citação do prêmio, considerado o mais prestigioso da cena literária brasileira, no meu modesto currículo.

Poucos anos depois, envolvi-me com outro prêmio literário, mas em diversa circunstância: fui convidado a ser julgador. Considerando que seria uma boa experiência passar de vidraça a estilingue, aceitei. Além do mais a remuneração oferecida, se não chegava a ser uma fortuna, também não era aviltante.

Fui esmagado por um pequeno Himalaia de originais, que atravancou minha sala. Como diz sarcasticamente um colega de ofício, se todos os que escrevem ficção no país também lessem, as edições de livros dos escritores brasileiros seriam formidáveis. Arregacei as mangas, respirei fundo e fui à luta.

Dividi os originais em três pilhas. Na primeira, a menor, fui colocando os textos que apresentavam clara qualidade. Na segunda, de tamanho médio, os de alguma qualidade, que eventualmente poderiam merecer uma improvável segunda chance. Finalmente, na terceira pilha, versão um pouco reduzida do Everest, os textos pobres de pessoas iludidas. Mas dá para ler tudo? Para escândalo dos não familiarizados com a atividade literária, devo dizer que a esmagadora maioria foi descartada com a simples leitura do primeiro parágrafo, às vezes com a leitura de duas ou três linhas. É o que basta, posso assegurar-lhes com toda a segurança. É como ouvir um cantor: se ele já desafina na primeira nota, você pode perder as esperanças de que ali se esconda um Sinatra. Mas, da mesma maneira, logo de cara, ao ler um dos contos, talvez o décimo em que pus os olhos, entusiasmado tive o pressentimento que iria se confirmar: este vai ganhar. Mais adiante constatei a existência de mais uns três ou quatro contos um pouco menos bons que o primeiro, mas ainda assim merecedores de premiação; e mais um punhado de contos bem razoáveis.

Meus companheiros de júri eram um escritor Conhecido, que vou chamar de Carlos; e um escritor Obscuro, a que denominarei Osvaldo e que fora indicado por um Sindicato dos Escritores formado majoritariamente por autores tão desconhecidos quanto ele próprio. Eu não tivera contato com os dois desde o lançamento do concurso. Transcorridas umas quatro semanas, toca o telefone: era Osvaldo. Vi logo que ele era escrupuloso e estava preocupado com a seleção: “Como é, você já separou alguma coisa?”, perguntou-me. Disse que sim. Ele fizera a relação dele e combinamos um intercâmbio. Quando anotei a lista dele, tomei um susto: nenhum de seus títulos constava da minha relação. E do mesmo modo, nenhum dos meus favoritos tinha sido anotado por ele. Ué, pensei, alguma coisa está errada. Será que não li os contos com a atenção devida? Ficamos de voltar a nos falar.

Logo me vi, como um personagem de comédia, de quatro, revirando ansiosamente papéis, em busca dos contos que me haviam passado em branco, sobretudo um que Osvaldo me garantira ser “fantástico” e de que eu não tinha a mínima recordação. Quando formei a pilha dos olvidados, corri a ler o texto que deslumbrara Osvaldo. Tratava-se de um conto meramente anedótico, sem qualquer elaboração, sem linguagem literária; a narração chapada, quase ginasiana, de uma historiazinha qualquer. Os outros seguiam o mesmo diapasão. Ptuzgrila, pensei, esse caldo vai engrossar. Meu parceiro, embora honesto, não tinha a menor noção de no que consiste a literatura. Mas eu confiava em Carlos; conhecia seus livros, era um escritor de grande qualidade. Tratei de telefonar-lhe. “Pô, cara, acredita que ainda não tive tempo de dar uma olhada”, ele me disse. “Mas assim que tiver separado alguma coisa eu te ligo para a gente conversar.” Ele era de fato muito ocupado; mas cerca de um mês já havia se passado.

Transcorridos uns dias, Osvaldo volta a me telefonar. Lera os “meus” contos, mas não tencionava mexer na sua lista, sequer para incluir aquele que para mim era o melhor disparado. “Tudo bem, a gente volta a falar mais adiante”, desconversei. Quando o prazo final se aproximou sem notícias de Carlos, resolvi telefonar para ele. “A minha vida está uma loucura, cara. Ainda não pude pegar nos textos.” Lembrei-lhe que Cronus trabalhava contra nós e Carlos disse que ia dar um jeito.

Na véspera do prazo fatal, nos ligamos e acertamos que nos reuniríamos no apartamento de Osvaldo, por ser o mais prático para todos. Na renovada comunicação telefônica, Osvaldo disse algo que me agastou: “Por mim, o que Carlos decidir, está decidido.” Achei absurda essa abolição da própria personalidade, além de uma falta de cortesia para comigo. Mas a verdade é que Osvaldo devia favores a Carlos, que inclusive prefaciara um de seus livros de contos chinfrins. Eu estava seriamente preocupado: o escrupuloso não “enxergava” nada; e o que enxergava mostrava-se descurado em relação a todos os que haviam depositado naquele concurso as esperanças de um julgamento justo. E nós não estávamos fazendo nenhum favor, estávamos sendo pagos para aquilo! Carlos finalmente começara a ler os originais; mas como examinar centenas deles em um dia (uma tarde?)?

No dia seguinte nos reunimos amistosamente, apesar de uma ligeira tensão no ar. Carlos disse: “Achei uns dois ou três interessantes”; percebi logo que havia examinado apenas uma parte dos contos e que não fazia idéia do conjunto, o que não o inquietava em nada. Eu precisava fazer alguma coisa. “Para mim, o melhor de todos, disparado, é esse aqui”, eu disse, extraindo as folhas do meu pequeno monte de selecionados. “Ah é? Deixe-me ver”, disse Carlos curioso. Não o havia lido. Pegou o original, concentrou-se e começou a ler atentamente. Antes de chegar ao fim, levantou a cabeça e anunciou com um piparote no maço: “Este é o primeiro lugar!”

Sem deixar a peteca cair, puxei um segundo texto: “Na minha opinião, o segundo melhor é este”. Carlos pediu para ler. Na metade, parou e concordou: “Este fica em segundo”. Apresentei em seguida o meu terceiro favorito. Mas aí Osvaldo, que até então não dissera água, mencionou o tal conto que ele achava o máximo. Obviamente já fizera campanha por ele junto a Carlos, que o havia lido. Tentei argumentar, mas Carlos ponderou: eu já apontara os dois primeiros lugares, era justo agora atendermos aos desejos de Osvaldo. Para não parecer intransigente, cedi (eram só três os prêmios e valiam uma grana não exatamente desprezível), mas isso me doeu, porque o conto posto de lado era de fina extração, escrito, como verificamos depois, por uma moça já premiada em vários outros concursos. E o terceiro lugar acabou indo para um não-escritor.

Escolhidos os vencedores, tratamos de abrir os envelopes de identificação. E aí veio uma surpresa: embora o estilo dos contos premiados com o primeiro e o segundo lugar fosse totalmente diferente, o autor era um só. Espertamente, como o regulamento falho mencionava apenas a exigência de pseudônimo, ele mandara vários contos, cada um com um pseudônimo diferente. Carlos e Osvaldo ponderaram que devíamos mudar o resultado, dando o segundo lugar para um outro autor, evitando assim a acumulação. Eu me levantei contra isso. Nosso trabalho fora escolher os três melhores contos; isso fora feito, disse, e agora eu não aceitava fabricar um resultado, para atender a conveniências dos promotores. Se o regulamento não previra a possibilidade, o problema não era nosso.

E assim sacramentamos em ata o resultado, para irritação dos promotores, a quem Osvaldo tratou de se queixar de mim. E no coquetel de entrega dos prêmios, vi quando Carlos, pessoa afável e comunicativa, dizia, copo na mão, abraçado ao vencedor:

— Seu conto era o melhor disparado e foi escolhido por unanimidade. Assim que o li, eu disse: esse vai ganhar!

Por que narro esses fatos? Para desacreditar os concursos literários? Para afirmar que são inúteis? Que não devem ser realizados? De jeito nenhum. Acho bom que existam. Em todas as atividades humanas há premiações, ainda que fazer arte nada tenha a ver com uma corrida de cem metros rasos. Apenas gostaria de chamar a atenção, sobretudo dos jovens autores, para a relatividade deles, para a ligeireza com que certas decisões são tomadas, para as idiossincrasias, acasos e mil circunstâncias que determinam os resultados, isso sem falar nos encomendados (sei de fonte segura do caso de famoso escritor que entrou num concurso com a garantia prévia de que seria o vencedor). Competições são válidas, mas suas sentenças, para o bem ou para o mal, não devem ser tomadas demasiadamente a sério. Quanto a mim, como já esperava, nunca mais voltei a ser convidado para jurado daquele concurso ou de qualquer outro.

Rubem Mauro Machado

É escritor, jornalista e tradutor. Autor de livros como A idade da paixãoO executante e Lobos.

Rascunho