O livro Poemas reunidos, de Geraldo Carneiro, uma coletânea de textos poéticos produzidos desde 1973, é uma boa oportunidade para os leitores conhecerem de forma mais ampla a obra de um artista múltiplo, publicamente reconhecido como poeta em tudo que faz. No poema física e metafísica, do livro Orfeu contra Odisseu, um eu lírico inquieto desabafa: “Um dia hei de ser múltiplo de mim/ do fim até o princípio/ deixarei de ser esse mercado persa/ minha alma enfim se encontrará comigo/ ou vice-versa”. A multiplicidade desse sujeito se realiza mais como contingência do que apenas como pulsão desejante de plenitude absoluta. Na atividade prática do dia-a-dia pela sobrevivência do homem e na vivência intensa do artista, o autor assume muitos papéis, abraça as milhores palavras e suspira em violinos alheios dos quais se apropria. Participa na produção de música popular, de roteiros de cinema e de programas de televisão, de dramaturgias, de traduções de clássicos, julgamentos de desfile de escola de samba, entre outras coisas.
Nesse sentido, numa postura antropofágica e cosmopolita, transita entre diferentes gêneros, espaços, tempos e arrisca-se por diferentes linguagens, que longe de se mostrarem arredias umas às outras, dialogam entre si, apesar de disputarem, permanentemente, espaço e cidadania a seu modo. Os poemas aqui reunidos traçam a trajetória da poética de um sujeito na busca de encontro com uma completude impossível de ser delineada numa unidade absoluta, como sonhavam os modernistas. O mito do sujeito moderno, centrado nessa perspectiva unificadora, foi corroído pela contemporaneidade que, apesar da ligação visceral com as tradições fundadoras dessa nossa cultura ocidental, não abre mão de sua condição presente, humana, demasiada humana. Afinal, “a eternidade dura muito pouco,/ eu quero ser feliz aqui e agora”.
O fato de o poeta ser múltiplo em máscaras, temas e abordagens não o tira, aparentemente, da condição de mercado persa. Seus poemas reunidos mostram essa profusão de movimentos como contraditórios, mas não excludentes; paradoxais muitas vezes, mas confluentes, em contrapartida, através de uma relação dialógica. São vozes que se insinuam desafiando o tempo histórico, cronologicamente marcado pelos séculos, anos e dias, através da perspectiva atemporal do Mito. Os poemas de por mares nunca dantes, por exemplo, narram a chegada de Luiz Vaz de Camões na “mui leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro” — e mui atual também. É assim que “então Luís Vaz se despe do penacho/ e lança-se aos pés do Office boy Body Preto/(…) o m.c. do baile funk do Borel:// CAMÕES: ó indígena, será que a despeito de tuas feições foscas, falas o idioma da brava gente lusitana.// BODY: Sarta Fora, brother! Indígena e indioma é o escambau!”.
Personagens das epopéias clássicas e figuras nacionais históricas atravessam o tempo presente numa profusão de cores e sentidos: Orfeu contra Odisseu, olavobilaquices, lira dos cinquent’anos, corações futuristas, parapsicologia da composição etc. Uma grande quantidade de títulos de seus livros faz referência a heróis épicos ou figuras representativas do universo literário, revenciados ou transformados em anti-heróis por meio da paródia: “O. Brás Martins dos Guimarães Bilac:/ o nome, alexandrino, prenuncia/ o gosto pela pompa desde o berço; era capaz de cometer sonetos…/ foi defensor do serviço militar/ sob forma de regime compulsório/ …vá ser babaca assim na puta-que-os-paris.”
Dante, Pessoa, Bandeira, Bilac, Camões, Mallarmé e tantos outros circulam pelos textos, permanentemente, como parceiros de uma mesma viagem de conquista. Tranqüilamente, o eu lírico se define: “tudo que escrevo foi talvez escrito/ ou sonhado antes de mim. /Minhas metáforas não me pertencem/ a língua me sugere seus enigmas,/ (…)/ vou inventando o mundo em que me amparo”.
Não seria de se estranhar o levantamento da falsa premissa de que a erudição do poeta pode fomentar um possível conflito com a sua arraigada veia popular. Ora, neste sentido, há toda uma tradição da nossa literatura que prestigia a pesquisa da cultura popular como condição da produção antropofágica da cultura clássica erudita. Italo Calvino, em Por que ler os clássicos, entre outras definições, acredita que “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Um poeta bom leitor dos clássicos não seria um papagaio de verbetes e citações. Simplesmente, seria aquele capaz de continuar, a partir dos vazios deixados pela tradição, a construção de novos sentidos para a invenção do mundo e de seu tempo.
Mas como pontua Geraldo Carneiro, em entrevista, “vamos parar com a falsa erudição, porque eu prefiro a eros-dicção”. É essa eros-dicção um dos pontos cardeais da rosa dos ventos novos dessa poética: amor ao norte, morte ao sul, sexo a leste, poesia a oeste, ócio fundamental a nordeste, contas a pagar a sudeste, Deus (?) a sudoeste e eros-dicção a noroeste. No centro de tudo isso, um sujeito carregado de incompletude, atravessado de desejos, frustrações e, contudo, compulsivos sonhos e esperanças. Essa eros-dicção incorpora a precariedade da fala, a premência de uma falta existencial impulsionadora de buscas sempre fascinantes e perigosas e a necessária evocação de heróis épicos e de mitos de primitivas eras revisitados. São ruídos e panos de fundo para a vida cantada em versos ou breves narrativas, porque afinal ”nem tudo é épico e oitava-rima/ disse o poeta Jorge de Lima:/ a vida é uma aventura extravagante/ sem dragões ou mulheres enluaradas/ só raro traduzíveis à flor da fala”. É à flor da fala que a desinvenção de Orfeu se realiza, mesmo que precariamente conduzida ao eterno retorno dessa aventura extravagante de escreviver: “cada dia que gasto é um espetáculo,/ o espírito e a carne se conciliam/ para fazer da minha vida um gesto/ cujo sentido desconheço, mas pressinto./ (…)/ mas nessa vida-barco em que navego/ alguma coisa-sempre principia”.