Barbárie eterna

Os dois contos de “O xale”, de Cynthia Ozick, tratam das marcas indeléveis causadas pelos campos de concentração nazistas
Cynthia Ozick, autora de “O xale”
01/03/2007

A história da humanidade é repleta de momentos atrozes em que o homem se mostrou o verdadeiro lobo de si próprio. O ápice desta história, ou o seu ponto mais baixo (isto é, se a humanidade não conseguir mais uma vez se superar na barbárie), são os campos de concentração, em especial aqueles em que os nazistas aprisionaram os judeus (na maioria), os ciganos, os homossexuais e os dissidentes de sua política durante a Segunda Guerra Mundial. Os campos de concentração dos nazistas são os mais lembrados porque os alemães perderam a guerra. Sua política sistemática de eliminação pelo assassinato de todo um povo não foi bem-sucedida, pois eles não tiveram tempo para isso. Mas cerca de seis milhões de pessoas morreram nesses campos.

(Vale a pena lembrar que antes da Segunda Guerra, entre 1932 e 1933, Stalin já havia exterminado cinco milhões de ucranianos e colocado outros dois milhões em campos de concentração. Ao fim da guerra, os “gulag” de Stalin tinham 5,5 milhões de prisioneiros. Os aliados ocidentais, por sua vez, eliminaram cerca de dois milhões de alemães étnicos, expulsaram de suas casas quinze milhões e estupraram dois milhões de meninas e mulheres. Ah, os aliados ocidentais — Estados Unidos, Inglaterra e França — já sabiam ao começo da guerra que Stalin havia eliminado cerca de trinta milhões de pessoas. Gente bacana…)

Muita tinta já foi gasta para falar desta tragédia. Infelizmente, há sempre coisas novas a falar sobre ela. (Digo infelizmente, pois houve tanta desgraça em um período tão curto de tempo que haverá sempre assuntos novos a se tratar sobre este tema). E quando pensamos que nenhum fato novo será capaz de nos chocar novamente, que nenhuma atrocidade não tenha sido descrita, vem a ficção para romper esta crença pueril de que mesmo no pior ser humano há um lampejo de humanidade.

No caso, estou falando da escritora norte-americana Cynthia Ozick e de seu conto O xale, primeiro dos dois que foram reunidos no livro de mesmo nome. Afinal, o que aconteceu nos campos de concentração é sabido de um bom pedaço da humanidade (tirando os revisionistas ideológicos que negam os fatos históricos). Teoricamente, não deveríamos ficar chocados com novas revelações (se fictícias ou verdadeiras, neste caso específico, pouco importa. Ozick escreveu algo que pode muito bem ter acontecido, só não foi relatado). Mas quem não sentir o estômago embrulhado ao final do conto pode ir direto a um médico para ver se o coração continua batendo.

Em O xale, conhecemos Rosa, sua filha ainda bebê Magda e sua sobrinha Stella. As três estão em um campo de concentração. Rosa sabe que crianças ainda bebês não são permitidas no campo, por isso envolve a filha em um xale e tenta de todas as maneiras impedir que ela chore e, conseqüentemente, seja descoberta. A menina, quase um esqueleto assolado pela fome, esquece o que é chorar, e vive envolva no xale, quase sempre o sugando para disfarçar a fome. Stella, também ela uma criança, mas de 14 anos, tem certa inveja da proteção que Magda recebe, do xale que o bebê tem.

O conto é curto, são apenas oito páginas, mas seu impacto é inversamente proporcional ao seu tamanho. A linguagem utilizada por Ozick nos hipnotiza e nos aprisiona junto com Rosa, Magda e Stella. Sentimos a atrocidade de sua condição.

Rosa, flutuando, sonhava em entregar Magda para alguém numa das vilas. Poderia sair da fila um instantinho e largar Magda nos braços de alguma mulher na beira da estrada. Mas, se abandonasse a fila, eles poderiam atirar. E mesmo que conseguisse sair da fila por meio segundo e entregar a trouxinha embrulhada no xale para alguma estranha, será que a mulher a seguraria? A mulher poderia levar um susto ou ficar com medo e deixar o xale cair no chão, e aí Magda bateria com a cabeça e morreria.ke

Em poucas palavras, podemos perceber que Rosa está delirando, que gostaria de proporcionar uma outra situação para sua filha, que está vigiada e impedida de fazer isto, que a filha é muito frágil e não suportaria uma queda. E são oito páginas assim, em um crescendo de horror e tragédia.

Poucas palavras são necessárias para descrever as condições das três no campo de concentração. Não sabemos como elas chegaram a ele (os porquês todos já sabem), mas temos absoluta certeza de que a vida delas não é uma vida, mas sim uma sobrevivência com tudo jogando contra. Não sabemos mesmo se há alguma outra motivação que lhes dê vontade de viver. Mas elas vão adiante.

Mais denso
No conto seguinte, Rosa, reencontramos as personagens uns 30 anos mais tarde após o fim da Guerra. Rosa Lublin, este é seu nome completo, agora vive nos Estados Unidos. Ela é considerada pelos outros como “uma louca, uma catadora de lixo, desistiu de sua loja — destruiu-a com as próprias mãos — e se mudou para Miami”. Depois deste pequeno gesto de insanidade em sua loja de Nova York, Rosa muda-se para Miami e lá vive sustentada pela sobrinha, Stella, e com as lembranças de Magda.

Se em O xale temos uma narrativa claustrofóbica em que a tensão se acumula para chegarmos a seu ápice no fim, em Rosa há uma narrativa menos frenética, mas um pouco mais densa. Se o clima de terror desapareceu do ambiente, ainda há a tensão e o horror que Rosa traz dentro de si, a lembrança dos dias tristes do campo de concentração. Rosa é apenas a lembrança de um ser humano normal, pois a tristeza e o senso de inadequação que ela tem praticamente a impedem de ter uma convivência normal com o resto do mundo.

Rosa vive ao largo da realidade, tentando ao máximo não se relacionar com as pessoas ao seu redor. Infelizmente para ela, a vida insiste em aproximar-se dela. No caso do conto, a vida chega perto na figura de um outro polonês imigrante, Simon Persky. Simon saiu de Varsóvia ainda em 1920, antes dos nazistas, o que faz Rosa dizer que a sua Varsóvia é diferente da dela. Simon, porém, um velho conquistador e namorador, insiste em tentar se aproximar de maneira íntima de Rosa.

É nesta tentativa de Rosa que vamos juntando os pedaços do quebra-cabeça de sua vida, para tentar entender o que aconteceu com ela após a Segunda Guerra; como ela veio parar nos Estados Unidos; o que aconteceu com sua loja em Nova York; por que ela a destruiu; o que a fez ir para Miami e como ela vive agora. Rosa, apesar de não demonstrar, tem sentimentos, e quando ela é convidada a participar de um estudo universitário que tem como foco a vida dos sobreviventes dos campos de concentração, reage ao que considera uma invasão de privacidade e à lembrança de que na Segunda Guerra ela também era considerada um objeto de estudos.

Antes eu achava que o pior era o pior, que depois daquilo nada podia ser pior. Mas agora vejo que depois do pior ainda tem mais.

A contradição entre a liberdade de um país democrático (claro, falamos dos Estados Unidos de uns 30 anos atrás) e a prisão interna de Rosa formam o núcleo da história de Rosa. Mas Ozick sabe que a experiência de Rosa é exclusiva dela, que ela não pode ser a experiência que define a vida de todos os sobreviventes dos campos de concentração. Sua sobrinha Stella, por exemplo, que se comunica com ela basicamente por cartas, vive dizendo à tia para que esqueça o que aconteceu, que volte a levar uma vida normal, que deixe todo o passado no passado e se concentre no presente e no futuro. Claro, há pessoas que conseguem fazer isso, mas Rosa não é uma delas. Ozick mostra que algumas pessoas não podem escapar do passado.

Ainda que sejam dois contos separados por três anos — O xale foi escrito em 1980 e Rosa, em 1983 —, eles são complementares. No primeiro, somos apresentados às personagens e à experiência que lhes marcará o resto da vida. No segundo, vemos as conseqüências da experiência de viver o Holocausto na vida de uma pessoa, e como esta experiência pode significar a prisão para uma pessoa. O diálogo entre os contos é complementar. Poderíamos muito bem ler apenas um ou outro, mas quando lemos os dois, temos a dimensão completa da tragédia que a humanidade foi capaz de fazer consigo.

Em um mundo completamente virado do avesso, onde o horror e a tragédia fazem parte do nosso cotidiano, Ozick mostra que pode ter havido uma experiência ainda pior para um determinado grupo de pessoas. Algumas conseguiram sobreviver, outras não escaparam de suas memórias. De alguma maneira, a escritora mostra que não conseguimos aprender com o nosso passado e não conseguimos evitar que o horror se repita de maneira quase que diária. Infelizmente.

O xale
Cynthia Ozick
Trad.: Sonia Moreira
Companhia das Letras
86 págs.
Cynthia Ozick
Nasceu em Nova York, em 1928. Ficcionista e ensaísta, é autora de mais de uma dezena de obras aclamadas de ficção e não-ficção. Considerada uma das contistas norte-americanas mais talentosas da atualidade, recebeu o primeiro Rea Award for the Short Story (1986), único prêmio dos Estados Unidos dedicado exclusivamente ao gênero conto. As duas narrativas de O xale foram incluídas nas coletâneas anuais Best American Short Stories e contempladas com o primeiro lugar na O. Henry Prize Stories em seus respectivos anos de publicação. O xale também foi selecionado por John Updike para a coletânea The Best American Short Stories of the Century. Da autora, a Companhia das Letras publicou o romance Vagalumes e parasitas em 2005. Não há outros trabalhos dela editados no Brasil. Sua obra fala basicamente da vida dos judeus americanos, ainda que ela lute contra o título de escritora judia.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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