Barbárie em letras

“Holocausto Brasileiro”, de Daniela Arbex, vasculha a trágica história do maior manicômio brasileiro
Daniela Arbex, autora de “Holocausto brasileiro”
03/02/2014

Pessoas de cabeças raspadas, anônimas ou chamadas por um nome que não é o seu. Nus ou cobertos por farrapos. Raquíticos que se alimentam da carne crua dos ratos ou pombas que conseguem apanhar. Bebem água do esgoto ou até mesmo a própria urina. Dormem sobre o capim ou no chão duro. São espancados, violentados e eletrocutados com tanta energia que a rede elétrica da cidade chega a cair. Mulheres grávidas que besuntam suas barrigas com as próprias fezes para que ninguém tenha coragem de lhes tocar, de lhes forçar um aborto. Pouco adianta. Assim que dão à luz, perdem as crias, que são mandadas para qualquer canto longe dali.

Estão todos confinados, internados à força. Há quem diga que são loucos, mas cerca de 70% não têm diagnóstico algum. São prostitutas, homossexuais, meninas indesejavelmente grávidas, esposas que perturbavam seus maridos por conta das amantes, alcoólatras, epiléticos, garotas que “envergonharam” seus pais por terem perdido a virgindade antes do casamento. Alguns são apenas tímidos ou depressivos. Pouco importa. Se estão internados no maior hospício do Brasil, em Barbacena, Minas Gerais, é porque há motivo para ficarem isolados da sociedade.

Mas nem tudo é desgraça. Muitos se beneficiam disso. Para começar, os poderosos que ali se livraram de pessoas inconvenientes. Também se beneficia quem de alguma forma tira proveito dos detentos, seja explorando a mão-de-obra, seja vendendo para faculdades corpos dos que ali morrem, seja derretendo em ácido (na frente dos internos ainda vivos) os corpos não vendidos, para que possam comercializar as ossadas. Quando o mercado pede algo e as mortes “naturais” andam em baixa, não há pudor em antecipar o dia final de alguns supostos loucos. Basta aumentar um pouco o sofrimento, como deixar que durmam ao frio relento da Serra da Mantiqueira. Enfraquecidos, raramente acordam.

Pelo que podemos saber, essas atrocidades fazem parte somente do passado do Colônia, como era conhecido o hospício de Barbacena. Mas a história do maior manicômio do Brasil, onde mais de 60 mil pessoas morreram, não pode ser esquecida. Parte das barbaridades que lá ocorreram é contada no livro-reportagem Holocausto brasileiro, da jornalista Daniela Arbex. Fosse ficção, boa parte do que revela seria inverossímil.

Falando de literatura
Daniela entrega ao leitor um livro sem brilho literário. Não que seja ruim. É bastante correto e, se analisado somente como uma reportagem, torna-se um ótimo texto. Contudo, há diversos pontos que poderiam ser mais explorados e melhorados pela jornalista. Um leitor frio e indiferente, que busque no texto apenas prazeres estéticos, provavelmente terminará a leitura frustrado — ou a largará no meio.

Concordo que a literatura, em sua essência, não precisa servir para nada, está ali apenas para encantar, para, como bela que é, ser admirada. Porém, se pode também causar impacto, provocar, propor transformações pessoais ou sociais, um tanto melhor. E, se no aspecto mais essencial da literatura, o livro de Daniela é razoável, no desdobramento que uma obra literária pode trazer, é excelente. Tanto faz qual o patamar do valor artístico de Holocausto brasileiro. Deixemos isso um pouco de lado. Quando uma realidade tão brutal, que aconteceu em nosso próprio país, com a nossa conivência, é apresentada, precisamos nos atentar principalmente ao conteúdo.

E, sim, falei da realidade. Meio que contradizendo o que defendi em Viagem a lugar nenhum (Rascunho #163), dessa vez a relevância da discussão do que é ou não real fica também para outro momento. O livro evidentemente não é a transposição da realidade, mas o fragmento de realidade que ele apresenta não nos permite enveredarmos para esse tipo de discussão. Quando vemos uma pessoa comendo um rato cru e relatamos que vimos alguém comer um rato cru, podemos não representar toda a realidade, mas o chocante fato principal continua ali. Dessa vez, apeguemo-nos a ele, não a todo o resto.

Para ler com as vísceras
Holocausto brasileiro é mais que uma denúncia, é um grito, um escândalo, que deveria ser lido com as vísceras e merecia ter estampado as capas de todos os jornais e revistas de nosso país. Não foi isso que aconteceu. Pela grande mídia, até onde pude acompanhar, passou quase que despercebido. Contudo, aos poucos vai ganhando espaço.

Assim que terminei de ler o livro, fui pesquisar mais sobre ele na Internet e achei um vídeo de Daniela no programa Provocações, de Antonio Abujamra (que é leitor do Rascunho e já citou o jornal diversas vezes, diga-se). Resolvi assistir. Já vi muitas edições do programa, mas jamais havia encontrado Abujamra naquele estado. O provocador estava desolado, desnorteado, inconformado. Nem mesmo todo seu aparente ceticismo e falta de crença na humanidade — é o tipo de pessoa que parece acreditar somente na arte — foram suficientes para lhe blindar do impacto de Holocausto brasileiro. Abujamra estava prestes a desmoronar perante tamanha barbárie. Reação parecida teve o meu pai quando terminou de ler a obra e veio conversar comigo; reação parecida vem tendo a minha sobrinha, enfermeira, que está no meio da leitura. Houve quem preferisse não lê-lo, temia perturbações à cabeça e à alma. 

Importância dos personagens
Voltando ao texto, se o maior mérito de Daniela é resgatar parte da história do hospício, ela também merece ser parabenizada por ter escolhido contar essa história por meio de alguns personagens que lá viveram. Uma escolha que, apesar de bastante simples, revela-se certeira para o que a obra propõe. Traz a história de Antônio Gomes da Silva, que não sabe por que foi mandado por um delegado para o manicômio. De Geralda Siqueira Santiago, que foi estuprada aos 14 anos e chegou grávida ao Colônia. De Sueli Rezende, que morreu sem jamais reencontrar Débora Soares, sua filha. Traz a história desses e muitos outros, devolvendo-lhes parte da dignidade e da identidade, como bem constata a consagrada jornalista Eliane Brum no prefácio da obra.

Essa humanização é fundamental para que o leitor crie empatia com o que está sendo narrado e perceba a real dimensão de tudo aquilo. O apego aos personagens é maior do que o apego aos números, e isso é essencial. Aprofundar-se em Celita Maria da Conceição, mostrar quem ela é e dizer que se lambuzava com as próprias fezes para proteger a sua gravidez, aproxima o leitor da narrativa e lhe causa um impacto muito maior do que a enxurrada de dados e estatísticas a que estamos acostumados a ver diariamente por aí.

Outro ponto que merece destaque é que Daniela não se limita à desgraça. Ainda que em alguns momentos tenda para a pieguice, não trata os ex-prisioneiros (acho que posso assim chamá-los) como meros coitadinhos. Mostra como muitos conseguiram recuperar algum controle sobre suas vidas. Também revela diversas pessoas que se engajaram para tentar mudar a situação do lugar.

Mas por que uma obra que retrata algo que já aconteceu, mas não acontece mais, merece receber tamanha atenção?

Não acontece mais? Quem disse?

Exemplo claro de onde isso ocorre são as cadeias brasileiras. Basta ver as recentes reportagens sobre o pandemônio que virou o sistema carcerário maranhense. As descrições são muito semelhantes a que temos no livro de Daniela. E não se engane, isso também acontece em todo o país, e não só nos presídios, mas em albergues coletivos, centros de tratamento compulsório para viciados em drogas ou qualquer outro lugar no Brasil que abrigue seres humanos indesejados pela sociedade.

E se uma obra literária não tem força para mudar absolutamente nada — aliás, a não ser elementos estritamente pessoais, dificilmente algo isolado pode provocar mudanças relevantes de qualquer ordem —, livros como Holocausto brasileiro têm o poder de ao menos nos fazer refletir sobre esses crimes que diariamente são cometidos com a nossa anuência. De nos fazer refletir sobre essa constante, disseminada e quase velada tragédia.

Holocausto brasileiro
Daniela Arbex
Geração Editorial
256 págs.
Daniela Arbex
Nasceu em 1973. Repórter especial do jornal Tribuna de Minas há 18 anos, tem no currículo mais de 20 prêmios nacionais e internacionais, entre eles três prêmios Esso, o mais recente recebido em 2012 com a série Holocausto brasileiro, dois prêmios Vladimir Herzog (menção honrosa), o Knight International Journalism Award, entregue nos Estados Unidos (2010). Em 2002, foi premiada na Europa com o Natali Prize (menção honrosa).
Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

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