Barbárie editorial

Em “O negócio dos livros”, André Schiffrin conta detalhes nada agradáveis de como funciona o mercado
André Schiffrin: detalhes sórdidos do mercado editorial.
01/07/2007

Se pensarmos na importância dos livros, ainda hoje, como o principal meio de preservação e transmissão do conhecimento, é fácil entender que seu tratamento não pode ser o mesmo dos demais produtos da cultura de massa. Mas é exatamente isso que já está ocorrendo, principalmente nos chamados países desenvolvidos. Os livros são, cada vez mais, avaliados por seu peso comercial, em detrimento do valor intelectual. Um pouco dessa história é contada pelo editor nova-iorquino André Schiffrin.

Em O negócio dos livros, Schiffrin narra sua trajetória editorial, que, como nos mostra, resume a triste história da tendência do mercado editorial como um todo. Uma editora bem-sucedida, a Pantheon, com um equilíbrio salutar entre livros de boa vendagem e obras intelectualmente importantes, mas irrelevantes comercialmente, que é absorvida por grupos editoriais maiores, que por sua vez são absorvidos por corporações de mídia maiores ainda, até que finalmente nada mais resta da identidade original. A perspectiva tradicional do editor que usa um livro de grande sucesso comercial para subsidiar o lançamento de autores novos ou de títulos de menor apelo comercial tende a sumir, segundo o depoimento de Schiffrin.

A história de Schiffrin começa em 1940, quando seu pai, o editor Jacques Schiffrin, exilado em Nova York, ajuda a fundar uma pequena editora, a Pantheon Books, a qual, nos vinte anos de sua vida independente publicou diversos autores europeus nos Estados Unidos. Mais tarde, André Schiffrin seguiria os passos do pai, indo trabalhar na mesma editora, onde ficou por trinta anos. Ele percebe, claramente, que a tendência autofágica não é exclusiva do mercado editorial. Cita por exemplo, as padarias de bairro, que nos EUA foram substituídas por grandes redes, com a inevitável perda de qualidade do pão. Os exemplos são inúmeros, em todas as áreas. No entanto, vale lembrar que a troca do pão fresco pelo pão industrializado não acarretará fome no mundo, enquanto que a exclusão paulatina de livros inovadores, questionadores, clássicos, pode agravar a alienação crescente de uma humanidade dominada pela mídia de massa de magos e maguinhos. Os que têm fome da verdadeira feitiçaria, o conhecimento libertador e transformador, podem vir a passar fome, se é que já não estão passando.

Schiffrin lembra que, na Europa e nos EUA, que são os universos que ele conhece, o trabalho de edição de livros tradicionalmente era exercido por pessoas com preocupações intelectuais e politicamente engajadas. Havia, entre os editores de lá, a preocupação de equilibrar a necessidade de lucro e a publicação de livros importantes. Nostalgicamente, ele observa que, na primeira metade do século 20, havia uma preocupação dos editores de atingir um grande público através de trabalho sério.

Essa preocupação sustentou-se de alguma forma até as décadas de 1970/80. No entanto, com o final da Guerra Fria, o mundo mudou, e surpreendentemente, não foi para melhor. A queda do muro de Berlim simbolizou o fim da polarização e dos debates de idéias no meio intelectual e editorial e a ascensão de uma visão de mercado como entidade reguladora absoluta de toda e qualquer forma de comércio. Segundo Schiffrin, a curiosidade pela diferença e pelo embate de idéias foi substituída pela “crença no mercado, a fé em sua capacidade de conquistar tudo, a disposição de submeter todos os outros valores a ele — e mesmo a crença em que isso representa uma espécie de democracia do consumo”. Por trás disso, temos a força de uma indústria cultural, amplamente estudada e conhecida de todos nós, que, nas últimas décadas, tem assumido proporções dignas das previsões de Orwell ou Huxley.

A preocupação com a qualidade editorial persistiu, com maior ou menor ênfase, enquanto as editoras se mantiveram como negócios predominantemente familiares, pertencendo àqueles que as haviam idealizado, até a década de 1970, aproximadamente. Era uma época em que as relações entre autores e editores era mais cavalheiresca, havia um princípio de fidelidade e não era considerado ético roubar autores de outras editoras. Não havia ainda, por exemplo, a figura do agente promovendo leilões entre editores por um novo título do último autor best-seller. Com isso, os autores tinham a segurança de que os editores desenvolveriam um trabalho de parceria com eles. E os editores, por sua vez, podiam contar com a fidelidade dos autores quando, e se, seus livros começassem a fazer sucesso. Autores não tinham seus passes negociados pela melhor oferta, como ocorre hoje, quando o mercado editorial não difere muito das negociações dos cartolas do futebol e autores mudam de editoras como políticos mudam de partido.

Abertura do capital
O processo de desvirtuamento da identidade editorial é descrito cruamente por Schiffrin. Em um dado momento, quando as editoras começaram a crescer cada vez mais rapidamente, a conseqüência natural foi a abertura do capital e a necessidade de lucros crescentes para valorizar o investimento nas ações.

No caso da Pantheon, enquanto se manteve independente, publicou traduções de autores inéditos nos EUA, como Gide e Camus, levando alguns dos mais importantes títulos da literatura européia para o novo mundo, ao lado de sucessos inesperados como A arte cavalheiresca do arqueiro Zen, ou o I Ching, e sustentando-se de maneira lucrativa. No início dos anos 60, foi comprada pela já grande Random House, época em que André Schiffrin foi chamado para trabalhar lá, pouco depois da morte de seu pai.

Os responsáveis pela Random House, naquela época, preocupavam-se em manter a identidade de suas aquisições e assim, deram autonomia a Schiffrin e sua equipe para que não só preservassem, mas também aprofundassem a tendência intelectual do catálogo da Pantheon. Desta forma, publicaram títulos com o O tambor, de Günther Grass, que viria a ganhar o Nobel quase quarenta anos depois, ou autores como Julio Cortázar e Marguerite Yourcenar.

Em 1965, a Random House foi comprada pela RCA e as coisas começaram a mudar, de maneira discreta, mas contínua. A prioridade da compradora, uma empresa da área de eletrônicos, era a saúde de seu livro caixa e, segundo Schiffrin, isso nunca foi um problema na Pantheon — a editora manteve-se lucrativa até o final, porém, os lucros foram considerados insuficientes, conforme alegavam os proprietários. Em 1990, informa o autor, as vendas da Pantheon eram de quase 20 milhões de dólares.

Alguns anos se passaram, e a RCA frustrando-se com o investimento, desfez-se da Random House em 1980, que passou para as mãos do mega-investidor S.I. Newhouse, que já detinha o controle de uma poderosa rede de jornais e revistas. O empreendedor, na época, afirmou estar satisfeito com os empregados e com a linha da editora e que pretendia permitir que continuassem a fazer o que faziam tão bem, só que com mais recursos. Atualmente, qualquer empregado que veja sua empresa ser absorvida por outra sabe que isso é conversa fiada. No entanto, no início da década de 80, quando a onda do crescimento empresarial pela via das fusões estava a pleno vapor, era fácil acreditar nas boas intenções. Afinal de contas, por que não acreditar que o que levava um empreendedor a investir numa aquisição era o fato de ele acreditar na empresa que estava comprando, e sendo assim, nada mais natural do que reforçar ainda mais os seus pontos fortes?

Na verdade, os pontos fortes em questão eram os livros de maior vendagem, e só. Apesar das promessas de independência, Newhouse passou a interferir diretamente na seleção de títulos. Cada vez mais, as empresas eram dirigidas por seus contadores, não por seus editores. A estratégia dava resultados. Compradas por 60 milhões de dólares em 1980, valia mais de 800 milhões em 1990. Mas isso ainda não era considerado suficiente, e a pressão sobre os editores para títulos mais lucrativos só fazia crescer, levando a várias demissões. A situação era a mesma em outros grupos editoriais grandes, como a HarperCollins, adquirida por Rupert Murdoch.

Foi nesse contexto que os agentes começaram a ter um peso maior, pois as editoras passaram a disputar agressivamente os autores mais promissores, com maiores chances de gerar os lucros exigidos mais rapidamente. Os adiantamentos aos autores, e seus agentes, começaram a escalar cifras astronômicas e irreais.

Em 1989, Newhouse demitiu Bernstein, um editor de fato, da direção da Random House, e substituiu-o pelo ex-banqueiro Alberto Vitale, o responsável pela política de que “cada livro deveria fazer dinheiro por si mesmo e que já não era possível que um título subsidiasse outro”. Além deste empreendedorismo visionário, Vitale passou a queixar-se da grande quantidade de “livros de esquerda” da Pantheon, agregando a pressão política à pressão econômica.

O desmantelamento da Pantheon, contado por Schiffrin, é uma história bem feia, repleta de baixarias e traições e culminou com a saída espontânea de boa parte da equipe, que não aceitou as novas regras após a demissão do autor. Em 1998, após as mudanças, um dos principais títulos do selo Pantheon foi uma coletânea de fotografias de bonecas Barbie.

O relato de Schiffrin, naturalmente, é carregado de mágoa e ressentimento, no entanto, ele justifica o fato de entrar em tantos detalhes sórdidos por considerar que sua história é representativa de várias outras, não só no mercado editorial, mas de todo o seguimento livreiro. Em 1945, por exemplo, Nova York tinha 333 livrarias, na época em que o livro foi escrito, em 2000, esse número caíra para 76, incluindo-se aí livrarias pertencentes a uma mesma rede. No caso das editoras, ele dá o exemplo de Londres, que, na década de 1950, tinha cerca de 200 editoras e, em 2000, esse número não chegava a 30. Obviamente, isso tudo tem um reflexo na diversidade dos títulos publicados. A censura econômica acaba sendo mais absoluta e nefasta do que a censura política.

A situação brasileira
Publicar um livro como esse no Brasil não faz sentido se não for para pensarmos em nossa própria situação. O site do Sindicato Nacional dos Editores de Livro (SNEL) registra dados até o ano de 2005. Neste ano, nosso mercado livreiro inteiro faturou R$ 2.572.534.074, pouco mais de 1,2 bilhão de dólares, distribuídos entre cerca de 300 editoras associadas ao SNEL. Em 2005, a Random House, sozinha, teve um faturamento de 1,8 bilhão de euros. Portanto, podemos suspeitar que nossas dimensões editoriais não justificam um investimento pesado das grandes corporações por aqui. Mas elas estão chegando, principalmente na forma de grupos originalmente de língua espanhola, como Editora Planeta ou o Prisa-Santillana, que comprou a Objetiva, ou ainda a Elsevier, que adquiriu a Campus.

Algumas grandes editoras nacionais se movimentam para fazer frente a essa tendência, como a Record e a Ediouro, cada uma incorporando sucessivas editoras e, a princípio, interessadas em manter a individualidade e diversidade de cada uma. Muitas dessas editoras, apesar de toda a sua história, como no caso da José Olympio, que hoje pertence à Record, ou da Nova Fronteira, comprada pela Ediouro, viviam um processo de decadência e insolvência. A compra por outras casas maiores garante-lhes a permanência do nome e, a princípio, a preservação de seus catálogos. Apesar das dificuldades, o canibalismo editorial parece ainda não ter se implantado de maneira tão selvagem entre nós.

Ainda assim, as pequenas editoras sofrem com os conhecidos problemas de distribuição e, de uns anos para cá, com a expansão das grandes redes de livrarias, que tendem a esmagar os livreiros independentes. Colocar livros de reduzido apelo comercial nas prateleiras das grandes redes vai ficando cada vez mais difícil. E os poucos distribuidores existentes estão muito mais interessados em vendas centralizadas para as grandes redes do que no pinga-pinga de livrarias isoladas. Não há motivo para que o capitalismo no Brasil se comporte de maneira diferente de outros lugares. Ainda assim, nosso comparativamente reduzido mercado editorial, em que qualquer livro que venda 10 mil exemplares é um estouro, é ainda um fator favorável para a preservação da independência editorial, para a diversidade dos títulos publicados e para o nosso exercício de liberdade como leitores.

O negócio dos livros
André Schiffrin
Trad.: Alexandre Martins
Casa da Palavra
184 págs.
André Schiffrin
Nasceu na França, em 1935, e vive nos Estados Unidos desde 1941. Durante 30 anos foi editor da Pantheon, por onde publicou importantes autores norte-americanos, europeus e latino-americanos. Desde 1990, dirige a editora independente sem fins lucrativos The New Press, localizada em Nova York e subsidiada por diversas fundações.
Daniel Estill
Rascunho