Bangue-bangue caboclo

Ao resgatar a origem da PM paulista, "Gambé" desmascara um pelotão de homens asselvajados que caçam, matam e estupram em nome da lei
Fred Giacomo, autor de “Gambé” Foto: Célia Hueck
01/07/2024

O jornalista Fred Di Giacomo Rocha estreou na literatura com Desamparo, romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2019. A obra se utilizava de recursos de fabulação para recriar a fundação do noroeste paulista, engendrando um universo que, embora esteado na história oficial, incorporava a argamassa ficcional à realidade de modo a constituir uma saga de personagens que, deparados, compunham a biografia do lugar. Famílias, clãs, estrangeiros, foragidos que, neste território medrado a sangue e semeadura, participaram da formação social da região, travando batalhas contra os nativos kaingangs, indígenas que defendiam as margens do rio Tietê contra a invasão dos colonizadores, numa história central orbitada por pequenos relatos de matadores, barões, escravos, defesas de honra, vinganças, amores, posses. Um trabalho de inclassificáveis virtudes cujo acerto era dar sentido e organização romanesca a uma extensa pesquisa bibliográfica, usando da vivência coletiva para conformar um panorama multifacetado.

Gambé, seu mais recente romance, encontra-se nesta mesma cartografia e período temporal, que data o início dos anos 1900. No entanto, a despeito de uma permanente sensação de continuidade, o autor muda habilmente seu ângulo de perspectiva, partindo de um microcosmo para estabelecer uma ampla recognição do passado local que, por sua vez, traz aspectos de caracterização da própria formação do Brasil. O foco está na Força Pública (um embrião da Polícia Militar), em especial na tropa de Captura liderada pelo Tenente Galinha, o sádico comandante de um grupo que faz as vezes de cangaceiros patrulhando o sertão paulista. Homens abrutalhados, entre pioneiros brancos, ex-escravizados e mestiços, que caçam, prendem, torturam, estupram e matam supostamente agindo em nome da lei.

A impactante cena inicial é um demonstrativo desta impregnação de violência. O pelotão se aproxima de uma casinha isolada num pasto, ocupada apenas por uma mulher. O marido, negro, é acusado de roubo de gado, de modo que ela passa a ser coagida a revelar seu paradeiro, numa escalada de tensão que evolui da ameaça para intenção de curra. O marido então surge e, inesperadamente armado, faz com que tudo se imploda num colapso vermelho. Entre os envolvidos, está o oficial Gambé, o protagonista do livro. Ele se seduz pela mulher, sensibiliza-se a um modo incompatível aos demais, embora não se furte de cumprir seu dever de tiro. O acontecimento, no entanto, irá lhe atormentar a partir daquele momento, sobretudo por se filiar a um outro fantasma que lhe nubla a infância.

Natural do Mato Grosso, quando menino testemunhou seus familiares serem atacados e a própria casa queimar a mando de um coronel local. A “cor sem nome” da sua pele, derivada de pai negro e mãe branca, e a sina operária foram decisivas para impedir que a facilidade com os números se convertesse na formação politécnica. Restaram a enxada e a única profissão possível ao pobre de se livrar da labuta pesada: tornar-se policial. Talvez uma forma de, espiritualmente, ter o poder de empreender justiça para si e punir gente como aquela que lhe incinerou o passado. Entretanto se depara com um sistema corrupto, de politicagem e barbarismo, na qual o mando se cumpre na bala e toda sentença é de morte. Segue ordens, ainda reticente, ainda a contragosto, até que, durante o cerco a um bandido, cai numa armadilha e termina mutilado na carne e nos brios.

Esta parte inicial apresenta uma contextura episódica, de relatos avulsos, nos quais muitos personagens entram e saem de cena sem destinos derradeiros. Os capítulos se interrelacionam por esbarro, pelas características espaciais e certas aparições, adotando, na maioria das vezes, um procedimento de condução retroativa, no qual a narrativa se inicia pelo meio ou pelo fim, e o andamento vai se rearranjando até articular sentido. Giacomo acerta em cheio ao não deixar sua pesquisa à mostra, subordinada a um didatismo relapso, empregando a matéria histórica na edificação do pano de fundo à frente do qual irão circular os atores da trama, evidenciados em seus traços físicos e psicológicos pelas consequências de seus atos, por como reagem aos dilemas impostos. O mesmo efeito se aplica às regras do mundo, reconhecido pela propagação da maldade, dos massacres e dos conflitos pela terra, do aniquilamento dos indígenas e da pistolagem dos jagunços; um imperativo selvagem, a soberania do cruel.

Então, a partir da metade final do livro, com a entrada de um novo integrante na tropa de Captura e o apadrinhamento de Gambé a um menino órfão que fugiu do convento, instaura-se uma cronologia cujos desdobramentos passam a ganhar uma conformação linear. Pouco a pouco, os fatos arbitrários adquirem um significado diferente, não pela relação que teriam com a realidade visada, mas pela maneira como se voltam ao passado, às referências que estavam ali o tempo todo e passaram despercebidas. As ligações difusas, ambíguas, desarmam-se num golpe que traz à tona uma contundente revelação, e o impacto da surpresa desconstrói o entendimento total para, em seguida, amarrar pontas e redirecionar a trama. Uma guinada de enredo provocada por uma reviravolta sangrenta, que faz lembrar a dinâmica de um conto presente em Sagarana, de Guimarães Rosa, cujo título será omitido de forma a não reduzir a experiência de leitura.

Desnaturalização da barbárie
O escritor mineiro, aliás, incide em vários aspectos sobre o texto. Na linguagem sertaneja, de elipses fonéticas e arranjos vocálicos pitorescos, presente na fala ruminada assim como numa vistosa rede semântica que resulta na tessitura do universo, na composição pictórica de matas, rios e fazendas, a natureza possuída de um ímpeto primitivo, selvagem em sua representação. Outra característica refere-se a uma visão desconstrutiva do macho, analisando, num ambiente em que o homem se impõe sobre o outro através da força física, o desfalque da virilidade em sua interpretação psicológica. Após sofrer a mutilação que lhe tirou “os bagos do saco”, Gambé parece se desgarrar da animália reinante, do consórcio de bestas, e (re)produzir sentimentos e compreensões que não habitam seus companheiros. Tais manifestações ocorrem em contendas consigo, mas também num gradual senso de horror pelo que pratica, pelas tensões contraditórias que o transformam no estranho daquele conluio de caçadores de gente. Neste sentido, é como se o homem se despelasse de seus traços arcaicos e, exteriorizando os anseios do subconsciente, desenvolvesse um aperfeiçoamento humano.

Se o romance, em suas páginas finais, convoca o leitor a refletir sobre a desnaturalização da barbárie, as temáticas de Rosa permanecem na experiência do protagonista em tornar reconhecível o drama da região na interseção da sua memória à própria expressão de secura do sertão, nos ecos temporais que advém da tradução deste recorte histórico-ficcional em significações simbólicas do embrião da cidade de São Paulo.

Giacomo descasca o ovo da serpente e transpõe, para a realidade atual, o arcabouço da violência, como um tropa mal-ajambrada, de fardas empoeiradas, cavalos magros e métodos rudes, racistas e impiedosos converteu-se numa entidade estatal marcada por crimes, torturas, massacres e chacinas. O faroeste, o bangue-bangue caboclo, que fazia parte de uma mitologia ancestral, transfigura-se para o espaço urbano e o pendor da justiça segue desigual para os mais fracos antes, agora e depois. “Eu sou a lei”, cospe o Tenente Galinha, diante do contraponto moderado de um personagem que pondera que se deve abrir mão do “direito sagrado da violência”, para que o Estado “julgue os crimes e os puna como pai justo que deve ser”. A defesa do homem que mata frente suas próprias convicções atravessa os séculos e caracteriza um pensamento reacionário, conceituando uma doutrina de violência que permanece viva, que elege presidente.

Gambé
Fred Di Giacomo Rocha
Companhia das Letras
200 págs.
Fred Di Giacomo Rocha
Nascido em Penápolis, extremo oeste paulista, é escritor e jornalista. Seu romance de estreia, Desamparo, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2019. Doutorando em literatura e cultura na Freie Universität, de Berlim, foi colunista do UOL, roteirista da Rede Globo e redator-chefe na editora Abril.
Sérgio Tavares

Nasceu em 1978. É autor de Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, publicado em Portugal com o título Equação sobre o abismo. Também publicou Queda da própria altura, antologia finalista do Prêmio Brasília de Literatura. Alguns dos seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Escreve sobre literatura brasileira e hispano-americana para jornais e revistas, além de editar o site A Nova Crítica.

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