Balzaquianos pós-modernos

Contos de Marcelo Carneiro da Cunha problematizam dilemas, impasses e relações daqueles que estão na faixa dos 30 anos
Marcelo Carneiro da Cunha: moderninhos
01/12/2005

O título do mais recente livro de Marcelo Carneiro da Cunha traduz com exatidão a proposta literária do escritor gaúcho de 47 anos: Simples (o amor nos anos 00). O autor trata de relacionamentos nesta contemporaneidade. De maneira simples. E simplicidade é um aspecto presente no conteúdo e, também, na linguagem de sua obra.

Os 17 contos de Simples foram construídos com a linguagem mais clara e direta possível. A idéia do autor, muito mais do que ser simplesmente entendido, é ser lido — e a legibilidade da obra é total. No primeiro conto, o que dá título ao livro, em meio a algumas digressões, o narrador emite discurso que auxilia na compreensão do projeto de Marcelo Carneiro da Cunha:

Acredito que Einstein também falou que a Teoria da Relatividade era simples. Simples para um fóton, talvez, cara-pálida, que não precisa fazer nada a não ser se comportar como partícula e como onda ao mesmo tempo, aparentemente sem precisar de idas ao analista para aprender a lidar com essa ambigüidade.

Que ambigüidade é essa a que o narrador se refere? A própria existência e seus impasses. Carneiro da Cunha criou pequenas narrativas (algumas longas até, mas são contos) com a finalidade de problematizar dilemas de quem está na faixa dos 30 anos — um pouco mais, um pouco menos —, inserido na sociedade brasileira contemporânea. O leitor e a leitora do Rascunho podem vir a se identificar com os balzaquianos e as balzaquianas recriados, reinventados, pelo autor gaúcho, ou mesmo reconhecer nesses seres ficcionais amigos, conhecidos, colegas. Da realidade para as páginas de Simples: gente que tem emprego, e grana que sobra depois de pagar casa, comida e roupa lavada. Seres descolados. Freqüentam vernissages, raves, sessões de autógrafos. São pessoas que lêem Diogo Mainardi. E odeiam José Sarney. Uns já estiveram em Berlim. Outros em Nova York. Muitos já transaram sem camisinha em Porto Seguro. Santa Catarina é o cenário de suas férias de verão. São humanos para quem o advento do www.google.com.br se revelou solução para preencher as lacunas de conhecimento. Freqüentam as Livrarias Cultura e Saraiva. Não perdem um episódio de Sex and the City. E o telefone celular é uma extensão de seu próprio corpo.

Não há juízo de valores. Nem absolvição. Tampouco são apontados os condenados. Nada disso. Os personagens criados por Marcelo Carneiro da Cunha estão em ação. E ação, no caso da literatura “carneiriana-cunhana”, significa se relacionar. A dois. O protagonista do conto Ódios é um sujeito, a exemplo do que o título irradia, que se caracteriza — ou, então, é caracterizado — por aquilo de que não gosta. E ele poupa pouca coisa:

Odeio música do tipo que toca em rádio de táxi, axé, pagode, e especialmente odeio reggae. […] Odeio cigarro, e andar de táxi; comida de avião e mulheres que querem ser minhas amigas. Odeio incenso, misticismo, Paulo Coelho, BBB, filmes do Glauber, Paul Auster, o SBT todinho. Rafting, rapel, trilha ecológica, surfe, comida vegetariana, macrobiótica, florais de Bach, homeopatia, o PSTU, o PFL, PMDB, PSDB, PDT, e especialmente o PTB e aquele monte de pastor com cara de vendedor de terreno subaquático.

O personagem vive a odiar, em meio a sua solidão e seu desencanto existencial, até que conhece, casualmente, em um território até então inóspito, uma exposição de arte contemporânea — “odeio arte contemporânea” — Marta (Mati). Tudo muda. Os ódios deixam de ter tanta importância. Ele, que anteriormente demonstrava odiar tanta coisa e tanta gente, José Sarney por exemplo, reconhece que, a partir daquele momento, poderia vir a aplaudir o José Sarney. Enfim, o advento Marta, a relação a dois que se inicia, passa a significar uma nova perspectiva e possibilidade existencial. No entanto, ele pondera: “Gosto dos meus ódios, eles me davam um sentido para as coisas. Mas hoje eu sei que adoro começos e acho até que gosto bastante do que acontece pelo meio. O que eu odeio mesmo, mais do que qualquer coisa no mundo, são finais”.

Gostar de começos: eis uma característica, não apenas do protagonista de Ódios, mas de muitos dos personagens do universo ficcional de Marcelo Carneiro da Cunha. Os balzaquianos pós-modernos estão a fim é da fase do descobrimento do corpo, e do universo, até então estranho, da época em que há mais risada e menos choro, beijo todo dia, muitos abraços, euforia antes de cada encontro. Simples, não é mesmo? Simples, como o amor nos anos 00.

Em vários dos 17 contos de Simples os personagens, homens e mulheres, manifestam preferência pelos inícios — sinal inequívoco de que, para eles e para elas, a hipótese de vir a casar, ter filhos, constituir família e viver feliz para sempre está fora de cogitação. E mais: as mulheres retratadas, recriadas literariamente por Marcelo Carneiro da Cunha, são apresentadas como livres, leves e soltas — o “príncipe”, a exemplo do texto de Cazuza, eternizado na voz de Cássia Eller, “virou um chato”. O conto Orgasmo, versão feminina, exemplifica isso. A personagem central, uma mulher, conhece um sujeito por meio da internet. Eles vivem em cidades distantes, mas o diálogo, via msn, o teclar diante da tela do computador, a troca de informações instantâneas os aproxima. Entre uma “verdade”, e muitas “mentiras”, ela revela, para ele, qual seria a fantasia ideal. Marcam encontro. Em um território neutro: uma outra cidade. E a fantasia, descrita em detalhes mínimos, é materializada. Ao final, ela revela: “Com tanto msn, com tanto homem o tempo inteiro, com tanta coisa pra fazer e tantas viagens por aí, quem quer ser casada?”

Teia social esmiuçada
Na ficção de Carneiro da Cunha, os personagens não desejam se aprofundar nas relações — e, se não querem isso, é porque, necessariamente, já não são mais crianças e tiveram, anteriormente, experiências que se traduziram em frustração. O modelo de seus pais, tios e conhecidos — que envelheceram entediados ao lado de alguém que não lhes diz nada — não os seduz. Eles e elas não precisam, obrigatoriamente, de sapiência. Querem, acima de tudo, viver intensamente o período que é considerado um dos ápices da existência humana: a pele é exuberante, os cabelos ainda não ficaram brancos — há energia para muita aventura e todo um futuro porvir. A personagem central do conto Rave é uma devoradora de homens: “Até quando, eu pensei, até quando? Não sei, não sei, mas acho que um dia, quando eu for mais velha, tiver, uns, sei lá; nesse tempo em que a gente fica séria, acho que isso passa.”

A protagonista de Banco de sêmen também: ela vai à luta, em busca do homem ideal. Se, no tempo da narrativa, ainda não o encontrou, devora outros, muitos. Sabe que esse homem — o ideal, não o príncipe encantado — existe e que, algum dia, deverá conhecê-lo e, finalmente, devorá-lo (sobretudo, se ele demonstrar conhecer algo além do básico do jazz e comprovar não ter escutado nenhuma canção do Djavan). Simples? Sim, como o amor nos anos 00.

Apesar dos personagens da ficção de Carneiro da Cunha demonstrarem despreocupação em relação ao futuro, há, em um único dos 17 contos do livro — exatamente o mais extenso — um personagem que revela outras inquietações. O conto se chama V1/V2; o protagonista, Maximiliano, conhecido como Max: os amigos o chamam de Vat. É, também, balzaquiano. “Sou solteiro e trabalho num grande escritório e tenho um grande futuro.” No entanto, todos em sua órbita estão casados ou a um passo do altar. “Então, agora eu era um solteirão a ser combatido.” Ele não tinha necessidade interna de passar pelo rito. A pressão era social. E, por isso, não parava de se indagar: “Por que as pessoas se casavam?”. É o impasse do goleiro diante do pênalti, ou melhor, e com mais precisão, do piloto antes da decolagem. V1 é o ponto do não-retorno e V2 é o imenso vazio que se abre quando a aeronave já decolou da terra-firme rumo ao céu. Vat tem possibilidades e um futuro a ser traçado em poucos instantes — possivelmente, o conto mais bem-resolvido do autor.

Simples é um livro que trata dos impasses de uma geração e traz simultaneamente, seja em suas linhas, mas também em suas entrelinhas, uma leitura crítica da sociedade brasileira contemporânea. Relações, cultura, economia, enfim, a teia social é esmiuçada. As narrativas fluentes, temperadas com ironia e doses inesgotáveis de humor, dialogam com o universo retratado — e apontam para um grande acerto literário. O deslize se dá nos contos-piadas: peças mínimas, por exemplo, google, em que são, simplesmente, citados itens de consumo de balzaquianos:

www.voegol.com.br
www.varig.com.br
www.tam.com.br

www.localiza.com.br
www.avis.com.br

www.caminhodorei.com.br
www.fazendaverderosa.com.br
www.pousadabounganville.com.br

www.livrariacultura.com.br
www.saraiva.com.br 

www.cadernodigital.uol.com.br/guiadosexo
www.viagra-exchange.com

De toda forma, Simples, como um todo, se revela um bem-sucedido empreendimento literário; necessário, por discutir o imaginário de uma geração. Simples faz de Marcelo Carneiro da Cunha, até o presente, o autor brasileiro que, com escrita impecável, com mais precisão traduziu os balzaquianos pós-modernos.

Simples (o amor nos anos 00)
Marcelo Carneiro da Cunha
Record
281 págs.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho