Balas de música acertando a cama

Tudo o que Sinatra cantava assumia ares de escritura: “I know that music leads the way to romance/So, if I hold in my arms, I won’t dance”.
Ondaatje: carências e perversões de um país opulento
01/05/2001

Orsino, Duque de Ilíria, na fala de abertura da comédia shakespereana Noite de Reis, resume de modo perfeito a complexidade do assunto: “Se a música alimenta o amor, tocai/Dai-ma em excesso pra que, saciado,/O apetite se esgote e morra, enfim./A mesma frase! Que compasso triste!/Ao meu ouvido chega com o som doce/Que sopra sobre um campo de violetas,/Roubando e dando odor. Agora basta!/Já não está tão doce quanto antes”. Shakespeare parecia conhecer bem o problema. O que nos parece tão amorável em determinado momento, no outro, já nos entedia. E esse tédio nos obriga a, mais uma vez, buscar — ou desejar, simplesmente — o prazer que, mais tarde, fatalmente transforma-se em aborrecimento. Aquele mesmo compasso melodioso e repetitivo, portanto, a palpitação empolgante e cansativa que a arte, o amor e o sexo nos proporcionam.

O arroubo romântico de Orsino é geralmente interpretado como síntese da manifestação amorosa do artista. Belíssima síntese. Pode-se até tentar combater a teoria: Orsino era um nobre afetado, nunca um esteta. Jamais um estilista. Mas quem o escreveu foi Shakespeare. Nesses versos fica claro que a declaração de amor de um artista, em grande parte dos casos, é pela própria arte. E pela própria alma, dispositivo desconhecido e particular capaz de criar, do nada, beleza. A poesia que um rapaz de vinte anos declama, patético, a respeito da divindade de uma mocinha qualquer, pode conter muito mais vaidade do que amor. “Se a música alimenta o amor”, o amor alimenta o amor próprio. Detecta-se, principalmente em virtuoses e preciosistas, uma grande carga de preocupação com o crescimento pessoal. Em gênios — e também em estetas esforçados, artífices muito zelosos da forma da obra de arte —, manifesta-se uma necessidade maior de concentração e isolamento. Não um isolamento social, não uma fuga asceta de tudo que há de festivo no mundo, mas, sim, uma tremenda falta de cintura e atenção no que se refere a relacionamentos íntimos. No que diz respeito ao amor, enfim. O gênio é um nefelibata. Em cruzeiro constante pelo céu da criatividade. No artista genial se confundem, então, o amor e a procura da satisfação estética.

Esse talvez seja um bom ponto de partida para se compreender Buddy Bolden. Não o Buddy Bolden real, mas o personagem criado por Michael Ondaatje em seu romance baseado na vida obscura do trompetista que muitos consideram o precursor do jazz (ou mesmo inventor), e de quem, na verdade, pouquíssimo se sabe. Em Buddy Bolden’s Blues (Companhia das Letras, 173 págs.), Ondaatje fundiu ficção, poesia e jornalismo.

Buddy Bolden foi um sujeito complicado. Nasceu, dizem, em 1876. Ou 77. Viveu em Nova Orleans. O que resta de sua memória é quase nada: uma foto em péssimo estado de conservação, os relatos não muito confiáveis de seus contemporâneos e a ficha médica do manicômio onde morreu, em 1931. Contam que foi o primeiro músico a inserir o blues no repertório de uma banda em que imperavam os sopros e os metais. Isso ainda no fim do século 19. Da inovação teria nascido o dixieland. Bolden seria, também, o pioneiro da improvisação jazzística. Não deixou, porém, nenhuma gravação. Apenas a lenda.

Lendas, no entanto, podem render ótimos livros. Foi o que Ondaatje fez com a história de Bolden. Criou, a partir de fragmentos de entrevistas, notícias de jornais antigos, depoimentos de amigos e fãs do músico, um poema impressionante sobre um artista — que, parece, foi genial — eternamente correndo atrás do amor ou do aprimoramento técnico (não necessariamente ambos ao mesmo tempo). Buddy Bolden’s Blues também é um retrato horripilante — e, às vezes, nojento — do desperdício de material humano que se promove, irresponsavelmente, nesse mundinho do demônio. A descrição da Nova Orleans da época de Bolden é feita exclusivamente à base de monstruosidade e desamor. Muito antes da prosa de Pedro Juan Gutierrez deslumbrar o sadismo do planeta com a sua Havana apocalíptica e escatológica, Ondaatje (o romance é de 1976) já lançava mão de imagens semelhantes para situar o leitor numa miséria ainda mais assustadora que a cubana: a das carências e perversões de um país opulento. Uma miséria de Primeiro Mundo, elevada à categoria de potência mundial, reveladora das segregações mais criminosas. Na Nova Orleans de Bolden, negra como a Havana de Gutierrez, parece haver somente violência, prostituição, doença, sujeira e promiscuidade sexual. As personagens femininas são, quase todas, prostitutas pesteadas ou aleijadas. A única que não é e nunca foi, é adúltera. Palco emporcalhado para a música de Bolden, que, segundo alguns, tocava hinos batistas de uma maneira bastante “diabólica”. Muita gente, inclusive, atribui a loucura de Buddy ao seu estilo blasfemo de tocar. A idéia medieval de que a insanidade é um adiantamento do inferno na terra.

Bolden viveu esse inferno. Morreu louco depois de passar quase três décadas alienado e solitário num asilo onde se praticavam estupros e espancamentos. Nos últimos anos, não falava mais nada. Apenas tocava, estranhamente, umas duas dezenas de objetos pré-escolhidos. Uma torneira, uma maçaneta, uma lâmpada, sempre os mesmos objetos. Percorria o mesmo trajeto e, de passagem, acariciava os itens de sempre. Não se sabe porque enlouqueceu. Ondaatje já o traça, desde o início do livro, como um determinado para a degeneração. A demência lhe parecia um fim inevitável. O receio doentio de ter as mãos decepadas; os rompantes de violência que acabaram por deformar, a navalhadas, o rosto de um amigo bonito; a suspeita de que teria estrangulado a sogra; o ciúme absurdo que sentia da esposa, não pelo amor que não conseguia, de forma alguma, desenvolver, mas devido ao medo paranóico de ser ou ter sido traído; a tendência de sensualizar toda mulher que encontrava, no ônibus, na rua, no bar, imaginando-lhe os cheiros e gostos, adivinhando-lhe as cores e manchas da pele. Tudo isso nos prepara para a tragédia mental que o espera. Uma versão, talvez a mais próxima da verdade, é a de que Bolden, antes saudável, sofria de uma infecção séria no ouvido que, com o tempo, evoluiu e transformou-se em meningite. Mas Ondaatje prefere não abordar questões médicas. O que o endoidou teria sido, simplesmente, uma afobação estratégica, um acidente de caça causado por inépcia ou distração. E a caça era simplesmente aquilo que ele pensava ser o amor.

Como tantos outros personagens baseados no estereótipo do músico de jazz, Bolden não ama. Não consegue. Não se concentra em ninguém que não seja ele próprio. Quando “confessa” seu amor à mulher de um amigo, em cuja casa é hóspede inconveniente, por sinal, ele encerra a declaração com um decepcionante “eu acho”. “Eu amo, eu acho.” Quem mais sofre com esse solipsismo inconsciente do músico é, óbvio, sua mulher. Ou suas mulheres. É desse tipo de comportamento ensimesmado que nasceu a máxima: “Nunca case com um músico”. E é assim, por exemplo, que se lamenta a namorada de Denzel Washington no filme Mais e Melhores Blues, de Spike Lee.

Há, no entanto, a vontade de amar. Em Bolden, estorvada pelo fatalismo de uma loucura galopante e pela ânsia de atingir a excelência musical. Ele queria tocar alto, num volume sobre-humano ou quase desumano. Passava horas ensaiando apenas notas. Soprava o cornetim e aguardava quinze segundos. E então soprava de novo. E enquanto isso, a doença o minava. Numa passagem impressionante, Ondaatje faz uma analogia de pesadelo. Discorre sobre a vida das putas de certo local, uma corja de coitadas que já andavam com um colchão amarrado às costas. Era só deitar e levantar a saia, na rua mesmo. Free-lancers e hospedeiras de todo tipo de doença, eram chamadas pés-de-cigana, porque, perseguidas pelos cafetões oficiais do lugar, tinham os tornozelos quebrados por eles a golpes de porrete. Mancavam, arrastando os pés inchados. Sua degradação era tão fantástica que Ondaatje as descreve assim: “Mulheres tão destruídas que usam o pau enfiado nelas para coçar-se”. Logo em seguida, faz com que Bolden reflita a respeito. Atormentado pelos primeiros sintomas da loucura, ele compara a queimação de seu cérebro ao incêndio vaginal das pés-de-cigana.

O maior trunfo do livro é o colapso final de Bolden, a conclusão que Ondaatje dá àquela busca inicial por amor e satisfação artística. Acontece na rua, num desfile público, em 1906. Bolden toca no meio da multidão dançante. Ele é famoso, popular, respeitado. Não rico. Nem ao menos mínima e financeiramente estável. Apenas o gênio popular, querido por todos, cercado pela admiração de amigos que se sabem muito aquém do vulcão espiritual que é Bolden. Pois ele vê uma mulher desconhecida, linda, vadia, gostosa, dançando e olhando para ele, um pequeno diabo rebolando no meio da turba. Buddy se entrega à fantasia que o desligará do mundo. Percebe que a mulher dança conforme os sons que ele emite. E imagina que pode controlá-la, como se o trompete fosse um controle remoto. Testa seus comandos enquanto toca cada vez mais alto e mais forte, desligando-se de tudo que o cerca. E ambas, mulher e música, parecem-lhe cada vez mais bonitas. Ambas, obras suas. E acredita até que, por vezes, a mulher antecipa com o movimento do corpo as melodias que ele vai criar. Ela improvisa, ele improvisa. E Bolden sente que finalmente atingiu a perfeição artística, sexual e romântica. É quando cai, ensangüentado.

Louis Armstrong teria dito que ele tocava alto demais. Rompeu centenas de vasos sangüíneos na garganta e no pescoço. Teve que ser operado às pressas. Bolden nunca mais retornou do limbo. Tinha 31 anos, então.

A exposição da idéia de que a dança da mulher é o espelho da música — e da arte, em geral — é o que de melhor e mais bonito há em Buddy Bolden’s Blues. Músicos preferem apresentar-se ao vivo a gravar em estúdio. Em frente ao palco, vêem, na platéia, a manifestação física de seu esforço estético. Dizem adeus à abstração que caracteriza a música. Reações emotivas de toda espécie: rebolados, gritos, aplausos, coreografias. Tudo serve de comprovante para a eficácia da sua arte. Ondaatje consegue juntar todos os anseios do artista numa mesma passagem, aliviá-lo de todas as suas tensões num mesmo clímax. Artístico, sexual e romântico.

O mesmo se vê no personagem McClintic Sphere, no brilhante romance V., de Thomas Pynchon. Sphere é um saxofonista de quem dizem que “toca todas as notas que Bird (Charlie Parker) comia”. Um prodígio. Uma prostituta chamada Ruby se apaixona por ele. Enquanto ela o massageia, ele permanece de bruços, cool, a cara enfiada no travesseiro. Teorizando sobre jazz. Até que, um dia, pergunta se ela compreende o que ele diz. E Ruby: “Sobre o trompete, não. As garotas não entendem disso. Só fazem sentir. Eu sinto o que você toca, como sinto o que precisa quando está dentro de mim. Talvez sejam uma coisa só. McClintic, eu não sei. Você é bom pra mim”.

O que interessa é o bem que se faz aos outros e, por conseqüência, ou exclusivamente, a si mesmo. Do nada, criar o belo. Da escassez de informações, reconstruir a vida de Buddy Bolden. O livro ainda tem outros achados. Há Belocq, o fotógrafo aleijado a quem Ondaatje atribui o único retrato de Bolden. Fotografava prostitutas paupérrimas utilizando uma técnica semelhante à de Andy Warhol. Expunha-as a horas de espera em frente à câmera até que, exaustas e de mau humor, parassem de posar. Até que parassem de fingir glamour. Há também a barbearia fabulosa onde Bolden trabalhava, onde respirava cabelo. (Hoje, os biógrafos do músico afirmam que Bolden nunca foi barbeiro.) O romance de Ondaatje — que, além de ter sido poeta, é autor de O Paciente Inglês e Bandeiras Pálidas — é escrito como se fosse poesia e montado quase aleatoriamente, a forma livre imitando o improviso do jazz, às vezes sem vírgulas ou pontos de interrogação. Cada capítulo composto pelo escritor como estrofe de canção.

Buddy Bolden’s Blues é levemente pessimista. Fala sobre impossibilidades artísticas, amorosas e sexuais. E as trata como instituições imortais e até inevitáveis. Mas, como a canção-metáfora de Orsino, que começa melodiosa e excitante e, logo em seguida, já não lhe parece mais “tão doce”, Ondaatje nos deixa a certeza de que o desejo de amor e aprimoramento de qualquer um, mesmo saciado e morto, acaba sempre voltando com maior intensidade.

Sonho de Uma Noite de Verão / Noite de Reis, William Shakespeare. Nova Fronteira. Tradução de Barbara Heliodora.

V., Thomas Pynchon. Paz e Terra. Tradução de Marcos Santarrita.

Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

Rascunho