São comunidades de leitores, gostos que se querem já formados, como quem precisa conservar um espaço para si que a vida ofereceu, são aqueles que escrevem, teimosos, uma certa alegria de estar por aí e poder falar, propor um outro lugar, são, enfim, estas as criaturas que, com todas as diferenças, desejam dividir um novo livro. Ver-se mais ou menos nele é inevitável e, neste sentido, não é sem ironia que atravessamos um livro intitulado O mau vidraceiro, no qual os textos de Nuno Ramos — suas lâminas — não nos refletem com tanta clareza.
Antes cortam, a começar pela disparidade discursiva dos 61 títulos que compõem o livro, quase todos curtos, ocupando não mais que duas páginas. Surpreende a multiplicidade de estratégias de composição, como se os textos se compusessem a partir de jogos estilísticos: quando o jogador é forte, assistimos a um agônico e respeitoso embate com as regras do jogo. Há, por exemplo, textos iniciados por uma frase citada (em geral, uma afirmação teórica) que, mesmo com as devidas aspas e a fonte bibliográfica, é incorporada à fala do narrador. Em Metáforas, uma afirmação do artista norte-americano Robert Smithson (“O tempo transforma as metáforas em coisas”) detona uma encenação, com direito a um coro trágico que grita as palavras “asa”, “penumbra”, “cinzento”. Trata-se de três vocábulos caros à poética de Nuno Ramos (lembre-se dos urubus expostos pelo artista plástico na última Bienal de São Paulo), cuja origem etimológica — não explicitada no texto — é metafórica, embora nomeiem coisas: de uma alusão às cinzas, “cinzento” tornou-se cor; antes uma qualificação da sombra (semi-sombra), “penumbra” nomeia hoje uma luminosidade específica; da semelhança com a alça de bules (origem latina de ansa), “asa” passou a nomear os membros de alguns animais. Esta encenação lingüística dará ensejo a uma reformulação da frase citada, pois, antes de o tempo transformar metáforas em coisas, “as coisas e o próprio tempo é que foram impiedosamente transformados em metáforas”. A partir deste momento, o coro toma a voz do narrador e discursa em defesa de um público que não acate as metáforas: “sejam aquilo que tiverem de ser (…), mas sem ter jamais o nome pronunciado e bicando até a morte quem ousar pronunciá-lo”.
Há uma engenhosidade nesta escrita que, ao mesclar elementos da tragédia grega a passagens próprias de um ensaio, associando ainda conhecimentos lingüísticos, em pouco mais de uma página sem narrativa, produz um texto de difícil classificação em gêneros literários conhecidos. Além disso, a fala final do coro sugere ao leitor, de algum modo, que a ficção — ao menos a de Nuno Ramos — não produzirá uma metáfora do mundo (famosa é a recusa da máquina do mundo drummondiana), não produzirá uma metáfora — um nome — em que o leitor se reconheça. São estas duas das maiores forças da literatura de Nuno Ramos, que comparecem em O mau vidraceiro.
Baudelaire
O caráter inclassificável da obra foi bastante alardeado pela repercussão do seu livro anterior, Ó, publicado em 2008. O próprio autor defende este aspecto insistentemente nas entrevistas que dá, e o formato de textos mais longos do livro de 2008 proporcionava maior extensão e, portanto, visibilidade às passagens não estritamente narrativas, favorecendo o seu argumento. Acontece que hoje, após um século marcado pela experimentação literária, podemos tomar maiores cuidados em afirmações como estas. Afinal, diferentemente dos contemporâneos da época, não nos questionamos mais se No meio do caminho, de Drummond, ou os poemas de Alberto Caeiro são de fato poemas. Se, por um lado, pode parecer repetitiva esta procura pelo texto inclassificável (e, até onde sei, apenas a resenha de Ó publicada em 2009 no Rascunho atentava para este problema), por outro é preciso reconhecer a pista oferecida em O mau vidraceiro, a lembrar, pelo título, um poema em prosa homônimo de Charles Baudelaire e, assim, apontar para uma tradição textual fundada na ambigüidade dos gêneros literários.
E, de fato, em narrativas, devaneios, diálogos, fábulas, os Pequenos poemas em prosa do poeta francês, como alegorias da vida moderna, são marcados por esta maleabilidade da forma, como se o escritor se servisse dos diversos formatos textuais para constituir um todo heterogêneo. Isso não quer dizer que o livro de Nuno Ramos seja composto por poemas em prosa, pois este gênero produziu uma história própria, com Arthur Rimbaud e Isidore Ducasse, a partir de Baudelaire. No entanto, parece haver nesta relação com o poema em prosa a reivindicação de uma escrita que preceda a divisão entre prosa e poesia; a reivindicação, por fim, de uma prosa que, como um poema, não se componha necessariamente por uma narrativa e ainda assim se sustente, necessariamente, por uma escrita singular, por uma voz.
Não são propriamente histórias que às vezes lemos em O mau vidraceiro, mas ensaios de leitura do mundo através de mitos inventados. Conhecemos, por exemplo, a história de uma mulher que, de tanto engordar, não pode mais sair pela porta do quarto em que vive. Passa a receber, com seu consentimento, mas um pouco a contragosto, a visita de turistas que, de passagem pela região, pagam ingresso para observar seu imenso corpo gordo sobre a cama. Ganha prêmio, bate recorde de peso. Chega, no entanto, uma grande seca à região e, com fome, os habitantes começam a deixar a cidade. Como a mulher não passava pela porta e como não suportaria o esforço da migração, foi deixada sozinha, emagrecendo de fome. Quando magra o suficiente para sair do quarto, a mulher caminha até a avenida da cidade deserta e, erguendo os braços, pede chuva ao céu — o que, de fato, acontece. A chuva traz de volta os habitantes que, no entanto, são mortos à distância e dos mais diferentes modos pela “deusa gorda”.
A vingança mágica a que assistimos nesta narrativa decorre da experiência grotesca do aumento da matéria do próprio corpo, o que estabeleceu um limite e uma diferença para a história da personagem. Não há muito espaço para experiências transcendentes por aqui: mesmo a mitificação produz uma deusa ressentida, hostil, para a qual, até o final do texto, não foram oferecidos sacrifícios a fim de que se acalmasse. O que há é uma poética da matéria, a requerer viadutos, restos de carnaval, tijolos e cimento, poeira, tintas, secreções dos corpos, cacos de vidro, corpos gordos, muito gordos, que, na evidência incessante de sua opacidade, de seu peso, de sua existência, desenham um quadro, algo trágico, algo desumano, de uma voz da matéria do mundo, que fala a todo o momento da existência — da vida? — do que não é um ser vivo, um bicho, uma pessoa. Assim é que a vingança da deusa é uma vingança de um corpo que conheceu seus limites materiais, e a narrativa torna-se a imagem de uma reorganização poética do mundo, que vem sendo elaborada pela obra de Nuno Ramos.
Muitas vezes é o texto como matéria a compor este mundo, como quando, no começo de Ninguém, lemos uma seqüência em prosa de três frases com onze sílabas poéticas, a proporem uma drummondiana recusa da rima e do sentido das palavras: “Se não quero das palavras seu sentido, mas aquilo que carregam realmente, e do incêndio quero o fogo e não a rima…”. Como se esta regularidade métrica e rítmica, trazendo à tona a música da prosa, fosse uma imagem daquilo que as palavras “carregam realmente” e que, no entanto, não pode ser dito. A música é o messias do texto literário (será de todos?), numa obra cuja “verdade” anunciada — como lemos em Música – é a “vinda da música”. Este caráter messiânico produz um problema na temporalidade do texto, pois às vezes a espera não parece suportável: ao final de Ninguém, após a recusa da rima — que não é uma solução — e mesmo do sentido, portanto, da metáfora — que não são o que as palavras carregam realmente —, as palavras precisam ser recusadas para, ao fim, “beber o que foi tinta até a boca ficar preta, e transformar a tinta em chuva, em tigre”.
Na interseção entre a chuva e o tigre, há a rajada: diante dela, não há guarda-chuva, não há proteção suficientes. Conversa entre os corpos, daquele que bebe a tinta das palavras e faz chover, e daquele que, no dilúvio, constrói seu barco para habitação nesta obra. Na orelha de O mau vidraceiro, o escritor português (nascido em Angola) Gonçalo M. Tavares fala a respeito das palavras que constituem “os materiais com que construímos o esconderijo, e só a cantar (ou a gritar) alguém se torna finalmente humano”. Também ele concorda quanto à exigência desta obra diante do seu leitor: respondê-la com palavras — barcos, esconderijos. Ler é, de algum modo, escrever o livro em nós.
Pouco se fala de um livro que Nuno Ramos, como artista plástico que é, publicou em 2005, chamado Balada. Nele, um livro de mais de 800 páginas em branco recebe um tiro bem em seu centro. Não há muito o que ler neste livro. Apenas sabemos que aquelas páginas perfuradas são uma balada da matéria do mundo. Entre a música e o tiro, a espera e a destruição, o tempo e a matéria (“o tempo é minha matéria”, lemos em poema de Drummond) — alguns textos se fazem, em O mau vidraceiro, à procura de outro leitor.