Desde que desmancharam no ar, as idéias passaram a constituir um conjunto muito indeterminado. Não só um campo de conhecimento específico produz mais saber do que a capacidade do pesquisador de se atualizar, como também o trabalho entre ou através dos campos de conhecimento diferentes tornou-se um antídoto necessário à especialização do conhecimento, complicando ainda mais a situação das disciplinas. O fato é que, ao mesmo tempo em que há tais movimentos de diferenciação do saber, há um certo estado de razoabilidade que organiza tanto saber e o direciona a um horizonte desconhecido mais ou menos comum.
Na Introdução ao recém-traduzido livro de Tzvetan Todorov, A beleza salvará o mundo, o autor desenha de maneira exemplar o território do conhecimento contemporâneo, a partir do qual imagina o seu livro. A princípio, sua preocupação é tão comum a todos quanto ambiciosa teoricamente:
(…) cada um de nós é animado por um projeto de vida, possuindo em nosso interior uma configuração ideal que nos guia a partir da qual julgamos nossa existência em dado momento. Sei que a aspiração à plenitude, à realização interior e a uma qualidade de vida superior faz parte dessa configuração, mas ignoro aonde ela deve me conduzir e que lugar ocupa a relação com o absoluto. É para descobri-lo que me engajei na presente investigação.
Para realizá-la, o teórico de origem búlgara (francês por adoção) escolhe três trágicas vidas dedicadas à literatura, a fim de iluminar trajetórias que tomaram a criação literária como a força central de suas vidas, aquela a partir da qual suas histórias se organizavam. Trata-se das vidas do inglês Oscar Wilde, do alemão Rainer Maria Rilke e da russa Marina Tsvetaeva, todos, “aventureiros do absoluto”, produzindo em suas obras uma imagem da modernidade ao custo de suas vidas.
A matéria desta investigação são as correspondências dos autores, parte da obra em que, se há produção ficcional, é por necessidade de se construir como sujeito. Deste modo, o próprio Todorov adverte que não se trata de um livro de crítica literária, pois as obras propriamente literárias não são seus objetos de estudo. Antes, é o testemunho destes escritores o que interessa. Ao ser apropriada, a matéria biográfica torna os três escritores personagens de Todorov, não sendo, por isso mesmo, inusitado o autor ter classificado o livro como um “romance” com aspas. Assim, tomando como objeto textos de literariedade ambígua (as correspondências), interessando-se pela interferência da experiência literária na construção dos sujeitos (o testemunho) e produzindo um livro de gênero mesclado (um “romance” crítico), o teórico confirma sua vocação de se posicionar na crista da onda do pensamento cultural, assim como já o fizera algumas décadas atrás em sua importante produção de viés estruturalista.
Única verdade
Numa obra que se elabora em fases, A beleza salvará o mundo faz par com A literatura em perigo, lançada no Brasil dois anos atrás pela mesma editora Difel e também traduzida por Caio Meira. Em ambas, observamos a preocupação de delimitar os efeitos da literatura: na primeira, trata-se de estabelecer limites para o efeito na vida de quem lida com ela; na segunda, para o efeito na leitura teórica, na pedagogia. Pode ser que essa preocupação se deva à percepção de que os desdobramentos do “estruturalismo clássico” (movimento teórico que propunha estabelecer bases científicas para o estudo literário) acabaram por borrar os limites da leitura e do efeito na vida dos que lidam com literatura, produzindo uma contradição velada: “O texto só pode dizer uma única verdade, a saber: que a verdade não existe ou que ela se mantém para sempre inacessível”, afirma em A literatura em perigo. Em A beleza salvará o mundo, encontramos um novo confronto com essa idéia numa bonita passagem do último capítulo, Viver com o absoluto.
(Os seres humanos) procuram encontrar em sua existência um lugar para o absoluto. Sempre foi assim, desde que os homens começaram a enterrar seus mortos e até hoje, inclusive quando parecem inteiramente absorvidos pelo frenesi do consumo ou do êxito. Pois, contrariamente ao que afirma o rumor, não é verdade que “tudo é relativo”.
Bem se vê que, embora o projeto do livro responda tão bem às demandas atuais do pensamento, ele instala uma crise nessas mesmas demandas, posicionando-se na contramão do rumor relativista. Aquilo de que Todorov não abre mão é uma imagem universal da obra literária, que, como representação do absoluto, encontra eco em todos os homens. Não é à toa que, com esta concepção, os artistas que aparecem citados gozem todos de muito reconhecimento na história da arte: além dos três biografados, são representativas as presenças de Hölderlin, Dostoiévski, Baudelaire, Rodin e Michelangelo. E o próprio Todorov reconhece o eurocentrismo de sua concepção artística, ao resumir e justificar a universalidade das vidas de Wilde, Rilke e Tsvetaeva: “São três europeus, bem representativos do destino europeu de uma aventura que, em si, pertence à história da humanidade”. Também interessa a Todorov que os três autores escolhidos tenham vivido em Paris e produzido obras em francês. Claro, a sua também é uma posição relativa, interessada.
Tanto é assim que o livro procura depreender a “amarga lição” destas três vidas, de modo a inserir a experiência estética na vida social sem, no entanto, repetir as histórias trágicas narradas.
Nem sacrificar a arte em nome da vida (como Wilde acabou por fazer) nem imolar a vida no altar da arte (como aconselha Rilke), nem separar ser e existir (como quer Tsvetaeva), mas tornar bela a vida comum. O absoluto, o infinito ou o sagrado não são, contrariamente ao que supunham essas concepções, um bem em si, outro nome da perfeição. Pois a vida é finita e relativa.
Há neste movimento uma inserção claramente francesa da obra do búlgaro Todorov, ao construí-la, nesta fase, como um moralista, alinhando-se a esta tradição específica e fundamental na formação da identidade literária francesa. Ao mesmo tempo, justamente este aspecto pode ser considerado uma elaboração conceitual da literatura que a compreende num campo ampliado, investigando e instaurando os efeitos dela no campo da política. É assim que os sacrifícios e as separações que estabelecem Wilde, Rilke e Tsvetaeva entre a arte e a vida social poderiam dar lugar à continuidade entre uma e outra, de modo a “civilizar o infinito”.
Esta saída para o impasse em que a experiência artística coloca a vida dos que lidam com ela surge, de acordo com Todorov, entre os românticos alemães, como uma manobra para resolver a barbárie que a Revolução Francesa, baseada em princípios democráticos, havia se tornado. A “educação estética do homem” produz democracia, pois, através dela, o sujeito se constitui democraticamente: “todos são iguais diante da beleza”. É preciso um sujeito democrático — que apenas se consegue pela desdogmatização social. “A arte, encarnação da beleza, ela própria sinônimo de autonomia, assume progressivamente a função que se reservava ao advento da fé: a de produzir seres renovados.” Estética e política se encontram no mesmo território, o da constituição do sujeito.
Pontos cegos
O caminho traçado por Todorov nesta obra corresponde à tentativa de ler a política contemporânea através do legado da arte moderna, como têm se construído também as obras de pensadores de projeção mundial, como Giorgio Agamben, Slavoj Zizek e Jacques Rancière. Mas esta é apenas mais uma face deste livro que aponta para tantas direções de leitura. Na verdade, durante a maior parte do livro, lemos a vida de cada um dos três autores escolhidos, acompanhada por pequenas digressões teóricas. São histórias comoventes, sem dúvida. Terríveis, em alguns momentos. Histórias que se cruzam, por algum motivo, na teia das relações sociais de cada uma destas três vidas, e na análise que delas faz o narrador Todorov. Embora se depreenda uma moralidade na análise do autor, que de maneira nenhuma é redutora teoricamente — basta observar as múltiplas leituras que ela permite —, o que mais interessa nessas histórias são seus pontos cegos, são aqueles momentos em que se percebe que não havia motivo para o sofrimento, para o erro, para a queda, e ainda assim sofria, errava, caía.
Repete-se no livro a situação de dificuldade de produzir suas obras em que se encontram os três escritores. Escrever é difícil e, muitas vezes, não escrever é o que há por se fazer. Não escrever é um ato. Ao concluir a narrativa da vida de Rilke, certamente a mais bem realizada, Todorov oferece uma avaliação de suas correspondências, que “contêm páginas as mais intensas que Rilke jamais escreveu”, afirmando o seguinte.
E o paradoxo se apresenta: essas cartas, que para uma maioria dizem sua incapacidade de criar e sua dor de existir, são uma obra plenamente realizada, mediante a qual vida e criação cessam de se opor para, enfim, se alimentarem e se protegerem uma à outra.
Ora, trata-se de um paradoxo decisivo para pôr em tensão as idéias do livro. Neste caso, não apenas uma obra se faz à revelia da obra propriamente literária — os poemas, os romances — como também a continuidade entre vida e criação (requerida para a constituição da democracia) se realiza. E isto acontece na obra daquele poeta que “imola a vida no altar da arte”. O que parece decisivo, ao fim e ao cabo, é que, desde que os homens começaram a enterrar seus mortos, desde o momento em que a morte é simbolizada, um horizonte se abre. A beleza é mais um horizonte que um território, afirma Todorov na Introdução. E Rilke, numa de suas cartas: “Deus só pode ser uma direção do amor, não um objeto de amor”. Bem se vê que, em matéria de salvação, o mundo pode estar perdido, mas a beleza não.