Aventuras críticas

Um olhar sobre a nova geração
03/11/2014

Vez por outra volta a questão da crítica literária. E nada mais anacrônico que julgá-la anacrônica: ela volta sempre; ao menos enquanto houver literatura. A crítica é o que se segue à leitura; uma reflexão sobre o sentido, depois do lido. É por esse viés reflexivo que a crítica pretende ser também um conhecimento. Um milk-shake feito de intuição, frequentação e aparato conceitual. O crítico: um leitor sensível em estado de atenção reflexiva. E, nesses tempos, sua raridade não implicaria em sua extinção — o que muda é o modo, mas a crítica é uma invariante; um correlato da leitura. Portanto, sua revisão sistemática é seu sinal de saúde.

É pelo viés do depois do depois do lido, do depois do sentido que Heloísa Buarque de Hollanda credita à crítica um dividendo biográfico. Nem é diferente com a ciência — que retomando o lugar do sujeito permite um corretivo às pretensões científicas da crítica desde o positivismo. Quando o rigor, se não basta, já faz muito. Ilya Prigogine, um Nobel de Física, dizia ser a ciência hoje a escuta poética da realidade. A crítica segue sendo uma atenção rigorosa às formas narrativas, às propriedades excitantes dos modos de dizer — e assim poder detectar os índices acrescidos ao imaginário social.

É o impacto das narrações renovadas que convoca a crítica. Pelo imprevisível das excitações que um modal discursivo cria. Por isso não é de espantar o binômio crítica e insegurança: um texto realmente de criação pede a aposta de novo conceitual para pretender acercá-lo. Claro, isso favorece também certa insustentabilidade, certa inconsistência: basta crer poder bastar-se, dispensar qualquer arrimo teórico — em confortável amnésia útil.

A crítica feita por cabeças moças, saídas da Universidade e escolhidas pelo Rumos Literatura, parece reatar com a suspeita dos românticos alemães com o peso do conceito. Ali como aqui a memória recente traz certo travor pelo tom redutor e autoritário que levava mais à conformação que à formação de novos ângulos de abordagem: o férreo enquadramento hegeliano, de um lado, e as aventuras kierkegaardianas da subjetividade; entre nós, a demarcação excludente dos ismos… Essa geração teve certo prazer na desconstrução do discurso cristão e do discurso do direito romano — tomados como bastiões inquestionáveis da cultura ocidental. Em algum momento a imagem do pedagogo e suas lições, a imagem do gramático e suas proibições foram alçadas a um superego autoritário. É saudável certa iconoclastia; como é prudente em qualquer topografia guardar referências. O que parece caracterizá-los é o risco da aventura crítica. E um certo gozo, uma alegria renovada por conta da inventividade literária.

Crise da crítica? Sempre — e de modo benfazejo. Ainda se procura cernir, discernir, passar pela peneira (é o étimo da palavra; quase gastronômico, portanto; mas, tanto excremento quanto discreto têm a mesma raiz; função natural — e cultural). No julgar há impertinência; mas, no abster-se, não há deserção intelectual? Crítica? Um esforço para se saber de que se fala.

Mudanças
Mudou a sensibilidade cultural, mudou o modo literário. Aos textos atuais já não se pede conformação a ideais nacionalistas, como nos idos de 1870. Nem mesmo o critério é mais o nacionalismo, como nos idos de 22. Que preocupação com o regional? O pertencimento é um direito; não um dever. Benedito Nunes: O regionalismo tem data certa: nasceu romântico, foi batizado pelo naturalismo e foi crismado em 30, pelos modernistas. Depois, se tornou crônico e, por fim, anacrônico. A topografia contemporânea à Web 2.0 radicaliza o antropofagismo de Oswald de Andrade, entende melhor o tout monde de Édouard Glissant, e já fez seu o “direito à pesquisa”, de Mário de Andrade. Liberdade de escolher, de assimilar o que está disseminado nas redes sociais. O desafio é fazer arte — essa síntese feliz do disperso. Esse, o ponto forte — e a fragilidade latente: as energias criativas pedem, mais que apenas pulsão, o freio da forma. Mesmo — ou: sobretudo — quando desnorteia, por não evidente.

A impressão que fica: esses críticos são menos belicosos; no entanto, são mais ousados. (Não é comum o vocabulário guerreiro, a batalha pela expressão; a crítica enquanto luta). Não são programáticos. Veem com saudável ironia qualquer pretensão sistematizante. Sinal de saúde, seguramente. Crise da crítica, de seus fundamentos, de seu alcance: sinal de sua liberdade — e seu risco; mas não ter que responder a qualquer demanda nacionalista, a qualquer doutrina teórica. Formidável insegurança que leva, não a repetir fórmulas, mas à possível aventura do pensar. Em dado momento Afrânio Coutinho imaginou que era a Academia o lugar por excelência do pensamento. Esses críticos, eles vêm dali, certo, mas se deslocaram — e largaram o esquadro. Já não se faz crítica como antigamente, a crítica acabou, etc. — Eppur si muove.

Há um inacabamento no projeto crítico que justamente deixa espaço para sua continuidade. É de se esperar que essa nova geração redinamize o vigor de leitura crítica; e reconsidere a função — e a necessidade — da crítica na cultura. Por ser seu sal. E assim responda a uma suposta apatia atual. É de se esperar que essa nova geração alargue a crítica às complexidades e aventuras da inventividade literária desse momento.

Rumos Itaú Cultural — Literatura
Programa de estímulo que de 1999 a 2002 dedicou-se a cursos sobre o diálogo entre a literatura e demais áreas de expressão artística, no biênio 2004-2005 enfocou as adaptações literárias para peças sonoras (Literatura/Audioficções) e em 2007-2008 e 2010-2011 voltou-se à crítica literária. Gestão: Claudiney Ferreira; coordenação: Babi Borghese; mediação dos laboratórios online de crítica literária oferecidos aos selecionados para as duas últimas edições: Alckmar Luiz dos Santos (2007-2008) e Lourival Holanda (2010-2011). Saiba mais em http://novo.itaucultural.org.br/rumo/literatura-7/.

Dossiê Rumos Literatura no Rascunho
Curadoria de conteúdo: Lourival Holanda (Recife – PE); produção editorial: Babi Borghese (São Paulo – SP); realização: equipe Itaú Cultural; ilustração: Ramon Muniz (São Paulo – SP); foto: Life Writer, 2005 – Crista Sommerer e Laurent Mignonneau máquina de escrever e software – Acervo Instituto Itaú Cultural – foto: Cia da Foto/Itaú Cultural.

Lourival Holanda

É crítico literário, autor de Sob o signo do silêncio e Fato e fábula. Trabalha na Universidade Federal de Pernambuco.

Rascunho