Aventura diabólica

Resenha do livro Poeira: "demônios e maldições", de Nelson de Oliveira
Nelson de Oliveira, autor de “Poeira: demônios e maldições” Foto: Tereza Yamashita
01/05/2010

O livro Poeira: demônios e maldições (originalmente publicado em capítulos mensais, no Rascunho), de Nelson de Oliveira, oferece-nos uma instigante leitura, cercada de suspense e insólitos acontecimentos. Apesar dos aspectos que nos lançam aparentemente a caminhos repletos de armadilhas e absurdos, a leitura nos convida a uma viagem através de mundos que se entrecruzam numa tensa relação entre o real e o fantástico. Discutem-se questões de um universo burocratizado cujas leis autoritárias não dão conta dos seres que transitam nas sombras da noite, nas linhas de livros condenados que se multiplicam inexplicavelmente, contra o poder “instituído”, entre desejos, sonhos, pesadelos e uma realidade de cimento e concreto, papel e poeira.

O livro é, em si, um objeto de arte concreto que, antes mesmo de ser aberto, já se oferece à leitura. Uma bela encardernação, com as bordas laterais pintadas de um marrom avermelhado, sugere ser o livro um pequeno tijolo da construção dessa biblioteca de Babel. A capa mostra alguns livros desordenadamente empilhados numa estante. Ao fundo desta, por uma das brechas da pilha, num rosto, um olhar à espreita… Está organizado em 77 fragmentos ou pequenos capítulos, separados entre si, invariavelmente por uma página negra.

O narrador, em terceira pessoa, no primeiro fragmento é tão instável e imprevisível quanto o desenrolar da trama. Isso porque, apesar de parecer onisciente, os cortes que realiza o colocam na posição de um diretor cinematográfico acionando muitas câmeras simultaneamente. Ou seja, a voz que dirige a narrativa dá a vez para outros olhares, muda o foco de observação e, portanto, o ponto de vista. Exemplo: ao apresentar os três personagens principais em um jantar familiar, a narrativa passa a ser encaminhada pelo olhar de um louva-a-deus:

Ah, maravilhosos olhos de inseto, como se descortinaria o palco da comédia, visto desse novo ângulo, de fora para dentro?

Provavelmente assim:

Um edifício atarracado de cinzento de apenas trinta e quatro andares.

A partir daí, tudo pode acontecer, se considerarmos que a narrativa pode estar sendo entregue aos olhos de um inseto ou de uma mulher meio inebriada pelos efeitos dos vinhos de Dionísio, por um burocrata enlouquecido, com delírios oníricos, ou por uns olhinhos de rato etc.

Tudo ocorre no tempo indefinido de um futuro próximo, talvez. O espaço também não parte de qualquer precisão geográfica, a não ser de falsas pistas que se insinuam pelo texto, como o nome da Biblioteca Mário de Andrade, mas que não levam a lugar nenhum. No plano mais objetivo, um bibliotecário depara-se com o aparecimento de montanhas de livros novos pela repartição, depois da proibição expressa pelos órgãos governamentais de qualquer edição de livros novos. A desobediência à lei era punida com o rigor da repressão. Mas os livros não paravam de aparecer não só nessa biblioteca como nas demais daquele mundo, para o enlouquecimento do bibliotecário e demais “autoridades”. Aliado a tudo isso, seres estranhos e das sombras passam a ser vistos pela cidade, especialmente, à noite.

Olhinhos de rato, olhinhos de morcego, olhinhos de gato vigiam as três sombras que tagarelam cercadas pelo entulho (…) vigiam as sombras tagarelas, que bêbadas e ignorantes, tagarelam, tagarelam, tagarelam.

Que divina ou demoníaca comédia será essa, cercada de maldições e seres, humanos ou não, mas atormentados, enlouquecidos, embriagados, obcecados, sonhadores? Que sedução é essa que emana desses seres das sombras e do cotidiano de uma grande cidade, envolvendo os leitores numa estranha cumplicidade de ir até o último ponto final, numa busca de sentidos que não se esgota nunca? Aqui o absurdo não é a falta de sentido, muito pelo contrário, é o excesso de possibilidades que dá a tônica e, muitas vezes, aponta para o movimento paranóico da criação. Onde não há sentidos, inventam-se novos, compulsivamente, tanto no ato da escrita quanto no da leitura. Livros que se rebelam, liderados por demônios que sobem das profundezas da terra ou do inferno, efetuam seqüestros e arrastam os seres viventes da superfície para as cavernas mais sinistras, com suas sombras. Faunos, Mal, Mallarmé, mitos primordiais ou desdobramentos pós-tudo, poeira, poder, maldições…? Só conferindo… Para se encontrar ou para se perder é preciso se lançar nos abismos e labirintos da aventura…

Poeira: demônios e maldições
Nelson de Oliveira
Língua Geral
400 págs.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho