Jorge Luis Borges é hoje escritor de grande reputação, embora a fama só lhe tenha chegado após os 60 anos. De imenso prestígio internacional, suas preocupações intelectuais se assentavam em rejeitar a pretensão realista do texto, refletindo, assim, sobre a dinâmica imaginativa da escrita e da leitura. Estimulado por escritores como Berkeley, Hume, Schopenhauer e Nietzsche, sustentava como premissa filosófica a natureza subjetiva de todo conhecimento e experiência, o que o levava a insistir na artificialidade do trabalho criativo, bem como na magia ficcional de qualquer texto, até mesmo um obituário. Labiríntico e enciclopédico, termos resultantes do fascinante mundo borgiano, a força dos seus escritos se constitui em absoluto relativismo, transportando o leitor para uma viva espiral, conforme conceitua a literatura. Se, por um lado, a imagem de um homem trancado numa espécie de “biblioteca total” delineou sua personalidade e erigiu suas preocupações, por outro, estas mesmas personalidade e preocupações foram igualmente construídas pelas histórias infantis, fossem as aventuras de Robert Louis Stevenson, fossem as narrativas familiares, narradas em tom épico por sua mãe e avó.
Dividido em cinco partes, Borges, uma vida, de Edwin Williamson, procura construir a biografia deste homem cuja vida eram os livros. Fruto de sólida e obstinada pesquisa, e no melhor estilo “o homem e a obra”, o trabalho procura indicar as afinidades entre a existência borgiana e sua produção escrita. Imerso em arquivos, fontes e entrevistas, além de copiosa bibliografia, o biógrafo tenta preencher as lacunas do biografado, organizando-as em conformidade com um minucioso ordenamento cronológico. Entretanto, lembro aqui o quanto o trabalho de escrever metodicamente uma vida é uma tarefa exigente: o exame de múltiplas fontes gera sentido, renunciando ao absolutismo da verdade; inscreve-se no sistema das representações do simbólico e introduz, com rigor científico e argumentativo, critérios de veracidade e plausibilidade, especialmente em se tratando de Borges.
O que caracteriza essa biografia em particular é um estabelecimento híbrido de um discurso histórico, de crítica literária e de psicanálise. Assim, a primeira parte do livro, “A espada e o punhal”, narra o lado épico das mitologias individuais de Borges, seus antepassados e a história da Argentina em sua marcha para a modernidade. O contexto histórico da formação do país se impõe como obrigatório para o biógrafo, bem como todas as transformações socioculturais da primeira metade do século 20. Ao ordenar com harmonia a trajetória borgiana (os modelos da infância, os amores vividos, a educação formal e a informal, a biblioteca paterna, enfim, todos os elementos que produziram seu resultado no homem e no escritor Jorge Luis Borges até sua morte, narrada no Epílogo), o livro oferece mecanismos para se pensar como se molda um comportamento, uma personalidade e um projeto de vida.
Todavia, pretender a totalidade, como se vê aqui, é sempre um risco, porque a escrita de uma vida é forçosamente lacunar. Expressa em ambição totalizadora, essa narrativa acaba por se tornar, a certa altura, maçante, especialmente se em comparação com o trabalho de fôlego empreendido por Emir Rodriguez Monegal em Jorge Luis Borges — A literary biography, de 1978, e o próprio ensaio autobiográfico de Borges, ambos consultados por Edwin Williamson. Guardadas as diferenças entre os textos de Borges e Monegal, pode-se dizer que ambos se assemelham porque, neles, a rede complexa e escarpada em que se trama uma vida lança luzes para a construção da imagem desse hiper-intelectual, tendo por foco a escolha do processo constitutivo do escritor. Assemelham-se, ainda, por divergirem nesse aspecto do propósito de Edwin Williamson, cujo texto reaplica ao biografado as formas de tradição romântica da escrita biográfica, de constituição teleológica, avivada por curiosidades pessoais que indicassem, desde o bisavô, a gênese de um escritor genial, ao que se acrescentaria a descrição dos acontecimentos históricos. Trata-se, assim, de buscar um princípio explicativo, capaz de particularizar Borges no âmbito dos acontecimentos socioculturais do seu tempo e de como sua personalidade teria absorvido esses eventos. A par dessas fontes, as informações a respeito da vida amorosa e das paixões vividas como substrato das composições criativas não escaparam ao biógrafo: mais do que elemento noticioso, os amores narrados constituem a justificativa para a sensibilidade excepcional, interpretada como móvel do seu trabalho literário ou intelectual.
Ao evocar os momentos da vida de Borges, suas inclinações políticas e emocionais, Edwin Williamson atribui um norte para a sua experiência, conserva a ilusão da fidelidade aos fatos e busca produzir um sentido de crítica literária que entende a obra pela existência do biografado. Seja como for, o tratamento biográfico ali produzido, além de bastante informativo, fornece explicações sobre a técnica de construções de retratos e conserva o interesse pela gama de informações reunidas sobre a vida de um dos mais renomados escritores argentinos de todos os tempos.