Autonomia sociológica

Com formas e resultados múltiplos, a literatura brasileira tem o mérito de registrar o novo momento da vida no país
Ilustração: Tereza Yamashita
01/04/2012

Nos anos 1980, lembro de ter me dado conta e de comentar com amigos a ausência de pobres no horizonte da narrativa brasileira corrente. Protagonizados por Rubem Fonseca, João Antônio, Dalton Trevisan, Caio Fernando Abreu, Sérgio Sant’Anna, Moacyr Scliar, João Ubaldo Ribeiro, Cristovão Tezza, Chico Buarque, João Gilberto Noll, entre outros, aqueles anos viram o amadurecimento de uma geração inteira de escritores cuja literatura, mal e bem, está aí, já permitindo certa visão de conjunto.

A regra era tematizar o universo da classe média em crise, fosse pelo flanco do assustador crescimento da violência, hoje apenas uma lamentável parte da paisagem; fosse pelo flanco das mudanças comportamentais radicais, que a Aids viria a interrogar tragicamente; fosse ainda pelo flanco da aparente falta de saída para a crescente irrelevância da literatura, substituída fazia pouco pela telenovela quanto às demandas narrativas, ou pela canção quanto às demandas líricas.

Quem escapava dessa temática? Pouca gente. Quem praticava o romance histórico (Luiz Antônio de Assis Brasil, Ana Miranda, José Clemente Pozenato, Tabajara Ruas), quem escrevia relatos com mais metafísica do que gana realista (Hilda Hilst, Lya Luft), quem mantinha o gosto pela experimentação (Valêncio Xavier, Paulo Leminski). E outra pergunta: esses que escaparam ao império da temática de classe média em crise conseguiram inventar um caminho realmente relevante? Permanecem como curiosidade? São legíveis ainda agora? Serão legíveis daqui a vinte anos?

No começo dos anos 90, numa conversa com meu amigo Paulo Ribeiro, que vinha de publicar um livro de feição vanguardista, muito próximo do que fazia estilisticamente Leminski, Glaucha, levantei esta lebre com ele: a ausência de pobres na literatura daqueles tempos. Mas não o fiz por minha iniciativa, e sim porque ele apresentava então um original seu, que tive o gosto de prefaciar. Era Vitrola dos ausentes, saído em 1993 pela Artes e Ofícios, Porto Alegre, e reeditado em 2005, pela Ateliê Editorial, São Paulo. (Para essa reedição na capital real do Brasil, influiu decisivamente Marcelino Freire, que entra depois nessa história.)

Uma publicação marcante dessa conversa foi Os pobres na literatura brasileira, organizada por Roberto Schwarz para a editora Brasiliense, em 1983, antes de boa parte dos autores aí de cima mostrarem por extenso suas capacidades. Ali há um sentido de repassar a variedade da literatura brasileira ao longo dos séculos marcando as aparições, escassas mas sempre significativas, dos de baixo. Organizado cronologicamente, o livro tem um ímpeto de combate que merece saudação ainda hoje: “as crises da literatura contemporânea e da sociedade de classes são irmãs”, dizia Schwarz, e por isso “a investida das artes modernas contra as condições de sua linguagem tem a ver com a impossibilidade progressiva, para a consciência atualizada, de aceitar a dominação de classe”.

Passados quase trinta anos, uma geração inteira, esse mote de ânimo socialista era contemporâneo consciente da profissionalização acadêmica do campo das Letras — incremente notável dos cursos da área, muito especialmente dos de pós-graduação, mestrados e doutorados aparecendo Brasil afora, com financiamento grande, muito maior do que, por exemplo, na Argentina. Profissionalização que gerou autonomia sociológica maior, o que tem conteúdo positivo porque permite liberdade de entidades antes fortes (como a Igreja, até os anos 1960 uma poderosa influência no metiê letrado), mas também gerou um certo autismo da área, que agora se banha gostosamente nas águas da irrelevância social, escrevendo apenas para si mesma e reunindo-se em convescotes autocongratulatórios, tudo financiado e com direito a pontos na carreira.

O livro de Schwarz é diagnóstico da história e, como todo livro importante, dá notícia de seu tempo: lendo agora seu sumário, encontramos ali os autores vivos e atuantes que, naquele 1983 (um ano antes das Diretas Já, dois antes da eleição de Tancredo de forma indireta, três antes do plano Cruzado de Sarney, oh, tempora!), pareciam ao coração de esquerda merecerem registro quanto ao tema do título, e que eram escassíssimos: o Chico Buarque cancionista, João Antônio e Dalton Trevisan (os dois únicos da lista inicial do presente texto); a poeta Adélia Prado; a literatura de cordel — o velho sonho esquerdista da voz popular autêntica, não tocada pelas letras nem pelo mercado —; e, finalmente, Marilene Felinto, que tinha estreado no ano anterior com o notável As mulheres de Tijucopapo. Era o primeiro caso da geração nova, nascida entre meados dos anos 50 e os anos 60, a ser registrado num livro como aquele. Primeiro e único.

A história caminha, sempre, e de fato a década de 90 viu se consolidar a geração de Marilene Felinto. Geração que aborda fortemente os pobres, os de baixo, os que vivem abaixo da linha das classes médias confortáveis. Não o proletariado organizado com que o comunismo sonhou, mas os pobres no plano material e os pobres de cultura exigente, aqueles que Onetti definiu numa sábia exclamação, que serviu de epígrafe ao romance Vitrola dos ausentes, de Paulo Ribeiro: “Qué fuerza de realidad tienen los pensamientos de la gente que piensa poco y, sobre todo, que no divaga”.

Pois aconteceu que muitos escritores dessa safra empreenderam o registro dos de baixo, a partir dos anos 90 e até hoje, agora já acompanhados de gente nascida nos anos 70. Gente desigual em temperamento e em resultado, mas toda ela permitindo uma visada de conjunto que acompanha, de modo que valeria a pena estudar (crítico? Saudosista? Efusivo?), o novo momento da vida brasileira, este momento em que, com as precariedades que se conhece, todos têm escola, há políticas consistentes de transferência direta de renda, um operário cabeça-chata presidiu o Brasil, isso tudo de mãos dadas com a entronização de padrões rebaixados de canção popular como moda dominante inclusive entre as classes médias.

Uma listagem certamente não completa poderia apontar alguns núcleos. Primeiro por estado de origem: do Rio Grande do Sul, onde vive o autor destas linhas, o citado Paulo Ribeiro, mais Altair Martins e Paulo Scott, estes dois mais jovens. De São Paulo: Paulo Rodrigues, Fernando Bonassi, Ferréz, Lourenço Mutarelli, Marcelo Mirisola. Do Rio de Janeiro: Paulo Lins, Rubens Figueiredo. De Pernambuco: a mencionada Marilene Felinto mais Marcelino Freire. De Minas, Luiz Ruffato; do Sergipe, Antonio Carlos Viana.

Ou nucleados por grupo social: os dedicados aos miseráveis das megalópoles submetidos ao mundo da força e das drogas, como Ferréz e Paulo Lins com destaque; os dedicados à classe baixa ainda integrada, ou aquela com ilusões de pertencimento burguês, Altair Martins, Paulo Rodrigues, Mutarelli, Rubens Figueiredo; os migrantes para os grandes centros, Marcelino Freire; os miseráveis das periferias do Brasil, Marilene Felinto, Paulo Ribeiro, Antonio Carlos Viana.

Ou por temperamento literário: o grande painel romanesco feito por Ruffato, em perspectiva histórica e com multiplicidade de vozes e estilos; o painel também, mas sem centro narrativo, de Paulo Lins; os contistas típicos, em contraste com o mergulho vertical de Lourenço Mutarelli e Rubens Figueiredo, este para mim o melhor de todos os citados.

Não é o céu, mas é alguma coisa: a literatura brasileira de nosso tempo, se tem uns quantos escritores dedicados ao mundo das crises internas de gente como nós, confortável socialmente (às vezes com grande qualidade e alcance, como na obra de Tatiana Salem Levy), pode se orgulhar de estar fazendo parte do debate geral do país, na forma de pôr em cena essa gente que vive numa realidade paralela à nossa.

Luís Augusto Fischer

É professor de Literatura Brasileira na UFRGS e escritor. Autor, entre outros, de Filosofia mínima —Ler, escrever, ensinar, aprender (Arquipélago).

Rascunho