Autobiografia do Brasil

Obras inéditas e relançadas de Gilberto Freyre aprofundam o estudo da colonização e do caráter portugueses por meio da “lusotropicologia”
Gilberto Freyre por Robson Vilalba
01/04/2011

“Sou francamente paradoxal.” Essa frase de Gilberto Freyre, ao unir franqueza e paradoxo, parece sintetizar paradoxal e sinceramente a essência de seu pensamento. Poucos pensadores brasileiros suscitaram tanta fascinação em seus leitores e uma alteração tão profunda no modo de compreendermos a sociedade brasileira. Poucos geraram polêmica e aversão proporcionais à originalidade de suas idéias. Gilberto Freyre está na vanguarda desses pensadores. E aqui, ao utilizarmos a palavra vanguarda, já se evidencia o teor contraditório da sua situação, representante do que poderíamos chamar, com a sua anuência, de uma revolução conservadora. De um só golpe, ele propõe a teoria e a encarna, representando-a em sua própria obra e vida. Afinal, Freyre considerava que, no caso do Brasil, o binômio desenvolvimento-conservação era a oscilação de uma balança que nunca chegaria a um termo.

O Brasil é uma dialética sem síntese possível, pois o “equilíbrio dos antagonismos” é o coração do processo civilizatório ibérico e, por conseguinte, o cerne da estrutura social brasileira. Tal constatação é uma navalha que corta dos dois lados: se fecha parcialmente as portas para qualquer projeto planificador e desenvolvimentista, que virá ulteriormente por meio da industrialização sulista e que será visto com muitas ressalvas pelo sociólogo, ao mesmo tempo sinaliza algo que experimentamos em nosso cotidiano da maneira mais evidente possível. Não é à toa que o Brasil é chamado de país de contradições. E isso não é sociologia. É um refrão popular. Ao contrário de fatalismo, Freyre via a “riqueza das contradições”, como notou Fátima Quintas. A franqueza do paradoxo. A virtude dos antagonismos. Estes não se sintetizam. Mas também não se excluem.

A vida e a obra de Freyre são uma soma infinita de oposições, idas e vindas. Sempre inconclusa. Talvez disso devenha a sua genialidade. Talvez essa seja a raiz do eterno dilema quando nos propomos a situá-lo ideologicamente. Talvez essa a grande mazela de julgarmos sua obra: ao criticá-la, estamos criticando elementos internos ao próprio modo de ser brasileiro, que ele e sua obra representam. Afinal, o tema do patriarcalismo, matizado depois sob o conceito de lusotropicalismo, que abrange uma série de obras, o acompanhará por toda a vida. É fato que ele criará novos adjetivos para seu método: anfíbio, existencial, barroco. Mas o patriarcalismo, na sua leitura, ainda que velado, continuará sendo a matriz da cultura brasileira. Portanto, não se trata de um conceito pontual em seu pensamento. É a sua medula.

Ao contrário do que se cria e ainda se crê, recentemente o historiador Nicolau Sevcenko chamou a atenção para o rigor intelectual de Freyre. Afinal, outro aspecto criticado em sua obra é o seu caráter ensaístico, considerada à época como pouco científica pelos sociólogos do então emergente meio acadêmico brasileiro, chamados pelo pernambucano, com certo desdém, de “objetivistas”. Com a formação oficial dos departamentos de Sociologia, tais discrepâncias tenderam a se fortalecer, chegando a criar, como lembra Simone Meucci, duas correntes: a sociologia científica e a sociologia de Freyre. Por outro lado, o próprio sociólogo se gabava de conhecer as premissas acadêmicas tão bem que era capaz de subvertê-las, traço que defenderá com ênfase em Vida, forma e cor, ao tratar de artistas e de escritores e ao ressaltar suas críticas à cisão entre rigor científico e linguagem artística. O estilo apurado, o gosto pelo detalhe, a descrição, a torção da frase, a elipse, a mescla de dissertação e narração, o uso da primeira pessoa, o emprego de termos eruditos unidos com naturalidade a um vasto vocabulário popular e até chulo fazem de Freyre um dos maiores escritores da língua portuguesa.

O próprio Roger Bastide já havia ressaltado o aspecto hipnótico de sua escrita. Tal foi sua ênfase na base literária da narrativa sociológica, que ficou conhecido entre os franceses como o criador de uma “sociologia proustiana”, ou seja, que não se ocupa dos espaços públicos indistintos da sociedade, mas trata da sua “história íntima”, à maneira do roman vrai dos irmãos Goncourt. Além disso, usa o famoso “tempo tríbio” agostiniano, onde presente, passado e futuro se encontram. Toda a micro-história e a história da vida privada, tão na moda, são uma invenção de Freyre, na década de 1930. Como ressalta em De menino a homem, oportuna autobiografia lançada pela Global, ele é o precursor desse enfoque, em nível mundial. Quer seus cultores aceitem ou não a filiação. Ou, no caso, por algum motivo atávico inconfesso, queiram rejeitar a paternidade totêmica patriarcal dessa linha de estudos.

Escândalo
Mas no que consiste afinal a inovação radical de Freyre? Como bem notou Antonio Candido, para um leitor atual talvez seja difícil ter a dimensão do escândalo que foi a publicação de Casa-grande & senzala, em 1933, primeiro volume da trilogia que compõe a série Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil, seguido de Sobrados e mocambos (1936) e Ordem e progresso (1959), e que seria finalizada com um quarto volume, Jazigos e covas rasas, nunca concluído. Em termos teóricos, Freyre havia aprendido a separar raça e cultura quando foi aluno do antropólogo Franz Boas, na Universidade de Columbia, a quem atribui uma das maiores lembranças de mestre que tivera. Por outro lado, ao colocar a análise econômica, de extração não-marxista, acima da religiosa ou política, e inspirado na idéia de Spengler, segundo a qual, na análise das sociedades, a casa é muito mais importante do que outras variáveis socioculturais, Freyre desloca em cento e oitenta graus o campo de visão da análise sociológica e histórica. Sai das questões macroestruturais políticas, mercantis, estatais, burocráticas, religiosas e macroeconômicas, predominantes mesmo em um historiador como Oliveira Lima, um dos seus maiores inspiradores e amigos, e que já havia colocado a historiografia em um patamar mais empírico. Nessa guinada, Freyre insere no centro do seu cenário o senhor de engenho, com seus escravos e mucamas. Ou seja: a casa, a senzala, a família.

Daí em diante, a sucessão de hipóteses e descrições de Casa-grande & senzala se segue em vertigem. Ao mesmo tempo em que explora o sadismo do senhor em relação aos escravos, mostra que ambos se apaziguam na medida do possível nas assimetrias de poder, em um processo de assimilação e contemporização, outros dois termos centrais. A tese da inferioridade do índio (coletor nômade e agricultor) em relação ao negro (sedentário pecuarista) e ao branco, defendida abertamente, para o mal-estar das boas almas indigenistas. As longas páginas de elogio à cultura negra e a crítica feroz ao racismo, em franco conflito com a eventual superioridade comparativa de outras raças e culturas em relação ao negro. Elogios ao negro e ao mulato sucedidos de paradoxais afirmações de que a fusão com o branco teria aumentado suas aptidões, bem como outras afirmações eugênicas. Já a crueza das descrições sexuais, tema de quase metade da obra, é um caso à parte. Curiosamente, e poucos atentam para isso, Freyre retira do negro a predominância do aspecto afrodisíaco da cultura brasileira, ou seja, refuta uma concepção explicitamente racista, e o coloca como próprio do branco, como estímulo que emerge induzido pela própria hierarquia do poder, cujo ápice é o sadismo. A iniciação sexual indiscriminada dos moleques com animais, com escravas, com mucamas, vistas como verdadeiras “carnes pretas feitas para o prazer”, e o atrito do poder sadomasoquista ativando ainda mais as glândulas erógenas. Os escravos enterrados nas edificações das casas para que seu sangue servisse de betume. A podridão dos hábitos dos brancos, as condições de higiene precárias, à exceção dos mouros. O papel mourisco na cultura, na arquitetura, na culinária, no folclore, no xale-véu das beatas. O tipo híbrido de catolicismo pagão, inclinado à magia, com temperos berberes, africanos, indígenas, embebido de um clima de erotização e moralização tropical mais amplo, com as beatas esfregando os crucifixos entre as pernas, às escondidas, na missa, para fortalecer os pedidos de casamento. A defesa do caráter plástico do português e sua aptidão à adaptabilidade, incomparável a nenhum outro povo colonizador do mundo. A mestiçagem como fenômeno central da cultura patriarcal. Os laivos anti-semitas nas descrições da função dos judeus no monopólio mercantil e na formação da ulterior estrutura capitalista, que poria abaixo os fundamentos patriarcais, pedra angular do iberismo e da mestiçagem. Seguindo-se a tudo isso um longo etc.

O escritor e sociólogo Gilberto Freyre

Apenas um espírito libérrimo como Freyre, com uma erudição avassaladora e um estilo sem par, poderia escrever Casa-grande & senzala. E jogar na cara do leitor comedido essa enxurrada de temas polêmicos, pressupondo-os como formativos do caráter brasileiro, ou seja, de todos nós, como quem oferece um espelho sujo a um amigo. A despeito da opinião da boa consciência aburguesada de então ou da classe média pacata de hoje em dia, seja ela adepta da esquerda progressista ou do fascismo estatizante, antagonismos estes que, para a felicidade dos amantes da dialética, nos últimos tempos têm cada vez mais se sintetizado, tais paradoxos descritos por Freyre não são científicos, no sentido de serem refutáveis por outras descrições. Eles são a própria essência vivencial e existencial da cultura brasileira, por mais que por questões psicanalíticas ou por simples conveniência não queiramos enfrentá-los. Não por acaso, já se disse que toda a formação da sociologia brasileira se deu para refutar em menor ou maior grau as teses de Casa-grande & senzala.

Eixos principais
A maneira que ele encontrou de ampliar o tema do patriarcalismo em suas obras ulteriores foi traduzindo-o em dois eixos principais: o iberismo e a colonização lusófona. Esta é, em contrapartida, a tese mais poderosa de sua obra e a de mais difícil refutação. Do ponto de vista étnico, poderíamos objetar, dizendo que a dicotomia senhor-escravo que ele analisa nunca poderia ter gerado a dinâmica histórica complexa que gerou. Tampouco teria produzido a mestiçagem que ele tanto valoriza. Mas nesse ponto, Freyre vai mais longe em sua busca das raízes da mestiçagem, que seriam a fonte do “equilíbrio dos contrários”. Para ele, o caráter plástico do português, responsável por um tipo específico de colonização não só na América, mas em todo mundo, e a aptidão ibérica em mesclar raças e culturas não nasce apenas do longo período visigótico, mouro ou berbere da Península. Não está alocada apenas no convívio pacífico de muçulmanos, cristãos e judeus ao longo de alguns séculos da Idade Média, na então chamada Hispania, região que abrangia toda a extensão peninsular. Não se trata apenas de ser um braço da Europa e um entroncamento que unia as quatro coordenadas da Terra, a norte e a sul, bem como o oriente e o ocidente, recebendo influxo de todas elas. A análise de Freyre demonstra, por meios antropológicos de análise dos graus de extensão da caixa craniana (dolicocéfalos, braquicéfalos, mesocéfalos), que esse hibridismo cultural ibérico começa no Paleolítico (2,5 milhões de anos até 10 mil anos antes do presente), e haveria, por exemplo, uma dificuldade de distinguir, na Península, a predominância dos elementos continentais, que nós hoje chamaríamos genericamente de europeus, daqueles de origem africana.

Essa predominância dos estudos ligados ao modo de colonização portuguesa, entendidos nesse sentido transoceânico, é desenvolvida em uma série de obras que foram oportunamente publicadas pela Editora É: O mundo que o português criou, Uma cultura ameaçada e outros ensaios, O luso e o trópico, Aventura e rotina e Um brasileiro em terras portuguesas. Em todas elas, Freyre pretende aprofundar seu estudo da colonização e do caráter luso por intermédio do novo conceito que passa a cunhar: a lusotropicologia. Esta se baseia na apreensão das “constantes portuguesas”, em sua dinâmica transoceânica, abrangendo quase todo hemisfério sul, e postula uma orientação comum e um complexo civilizatório próprio, não demarcado por estados nacionais, etnias, culturas ou línguas, mas pelos modos de aculturação e de mestiçagem que se operaram nessas regiões híbridas.

Mais do que uma lusitanidade ou portugalidade, Freyre lida com a mencionada hipótese de uma lusofonia expandida. Em O luso e o trópico, traça uma aproximação importante para as relações entre Portugal e Brasil, sem abandonar a análise de outras regiões sob a influência da colonização ibérica. Quase de maneira complementar, em O mundo que o português criou (1940), e de certa forma em contraponto com algumas definições do caráter português contidas em Casa-grande & senzala, amplia dados sobre a vinda dos primeiros portugueses à terra brasilis. Por seu turno, essas idéias são retomadas em Aventura e rotina e em Um brasileiro em terras portuguesas, ambas de 1953, após longa viagem pela lusofonia africana, chinesa e indiana. Freyre cada vez mais passou a mesclar a pesquisa em arquivos e bibliotecas à pesquisa testemunhal direta em experiências pessoais.

Essa apologia ibérica é de uma grande abertura, pois nos força a rever todo processo civilizatório português não mais em uma chave lusitana, mas sim na dimensão de uma geopolítica “cosmopolita” que fez da península um ponto estratégico milenar que contribuiu decisivamente para a modernização e, contraditoriamente, isolou-a, produzindo a sua insularidade perante a Europa. O Brasil viveria o mesmo dilema, e é por isso que Freyre é um autor fundamental para compreendermos o que se costuma chamar de “modernização conservadora”, fenômeno típico brasileiro e que não tem teor necessariamente negativo. Afinal, sendo paradoxal, diz respeito à realidade brasileira profunda. Só por isso, merece atenção. Na verdade, a modernização deixa de ser conservadora com o processo industrial e com o urbanismo. Tem suas origens no projeto desenvolvimentista tipicamente do Sul. Temos então, com esse processo, na visão de Freyre, descrita em Ordem e progresso, algo bastante negativo: uma crise nos princípios de acomodação social, a partir da qual os lugares e papéis sociais se embaralhariam, e a dinâmica dos opostos deixaria de ser complementar. Esse talvez seja um ponto fraco do pensamento de Freyre, pois ele não contempla que tal dinâmica, sendo interna à cultura, não poderia ser pulverizada por um deslocamento demográfico nem pelo trânsito de um segmento rural aos segmentos urbanos, tampouco pela mudança dos modos de produção, do mais local à escala mais industrial. Mas mesmo nesse quesito, suas observações são preciosas, pois, como ressaltou Fernando Henrique Cardoso em um ensaio sobre o sociólogo, demonstram que é justo nesse momento que o Brasil desloca seu eixo de gravitação “do Oriente para o Ocidente”. Essa idéia é muito importante, matricial para entendermos o pensamento de Freyre. Vou apenas levantar alguns pontos aqui.

Visão dos paradoxos
Esse processo modernizador começa com mais ênfase na passagem da monarquia para a república e é amplamente analisado nas mais de mil páginas de Ordem e progresso. Resumidamente, a grande questão que se coloca na passagem do século 19 para o 20 é: como conferir unidade ao Brasil? O poder monárquico, mais centralista, seria capaz de realizar essa coesão? Ou a República, entendida como a soma dos diversos núcleos de poder, a levaria a cabo? Em muitos sentidos esse é um falso problema. No fundo, sociologicamente, a República sempre foi uma continuação do Império. Haja vista o caráter diminuto que a revolução ocupa na transição dos sistemas de governo, comparados com outros países hispânicos. Porém, comparada às repúblicas caudilhistas dos países hispano-americanos recém-emancipados e aos absurdos a que o bolivarismo conduzia alguns países, por estranho que essa afirmação pareça, a monarquia brasileira, sob Dom Pedro II, era muito mais desenvolvida. E valeria aqui a famosa piada, segundo a qual, com o fim da monarquia brasileira, acabava a última democracia da América Latina.

A visão dos paradoxos flagrada por Freyre vai tão longe que a própria divisão entre progresso e atraso, vincada no lema positivista da bandeira, é questionada. Sua leitura é a de que assim como haveria no Brasil uma “mística” da liberdade, que tem seus alicerces em uma noção abstrata de progresso, também haveria a sua vinculação a uma ordem, igualmente abstrata, que não dimana das forças reais dos atores sociais que estão na base da pirâmide social, mas sim da noção de Estado e de um princípio de autoridade, cuja materialização mais prosaica é a nossa cultura bacharelesca e o nosso tão familiar e cotidiano autoritarismo. Este movimento, em contrapartida, se consuma em uma defesa irrestrita da ordem e de sua legitimidade irrestrita, que por sua vez se dá de maneira externa e, em último caso, por coerção. Para Freyre, o dilema alternativo entre autoritarismo e democracia seria um falso problema, pois, no fundo, ele representaria a materialização dessas duas místicas complementares: a da ordem e a da liberdade. Porém, no Brasil, devido à nossa formação, ambas necessariamente coexistem sem possibilidade de se excluírem. Para o pernambucano, a raiz desse processo já está potencialmente na dinâmica colonial do senhor de engenho e do escravo. Ou seja, na complementaridade pacífica e na dialética sem síntese possível entre opostos que se equilibram e se alternam eternamente.

Ora, mas se a Península Ibérica sempre foi um grande celeiro cosmopolita, um entreposto entre as Índias Ocidentais, o continente europeu e todo o Oriente, e se o comércio e as missões jesuíticas conectaram durante muito tempo o Brasil com a África, a Índia e a China, com a ascensão do capital industrial o Brasil tende a romper esses velhos laços e a se alinhar a países como a Alemanha, a Inglaterra, a França e os EUA, cosidos no seio de um capitalismo de extração protestante, e, justamente por isso, rapidamente industrializados. Em Uma cultura ameaçada, Freyre destaca os perigos para a sobrevivência da matriz cultural luso-brasileira, advindos de um eventual imperialismo nazista alemão, mas ao longo do tempo o sociólogo distinguirá as matrizes sociais alemã e inglesa, sem, contudo, mostrar a diferença essencial que ambas teriam com relação ao iberismo.

Trata-se também da fase de deslocamento da produtividade do Norte e Nordeste para as regiões Sul e Sudeste. Pode-se dizer que Freyre nutria uma grande desconfiança quanto aos resultados desse deslocamento. Tanto que em Homens, engenharias e rumos sociais, publicado em 1987, ano da sua morte, o autor trata da engenharia em sua forma social e humana, além da física, dando atenção à ocupação das florestas brasileiras, em especial a Amazônia. Podemos dizer que, na leitura de Freyre, com a industrialização o Brasil iria se tornar servo do modelo de produção sulista, que era, por sua vez, o modelo europeu-ocidental, mas não o ibérico, ou seja, menos “cosmopolita” e menos “universal”. Curiosamente, do ponto de vista de Freyre, simplificando bastante uma questão muito mais complexa, apenas com a industrialização o Brasil passa a ser “ocidental” e deixa de pertencer ao grande bloco transatlântico de um Oriente expandido. Em outras palavras, deixa de ser lusotropical.

Às suas duas grandes vertentes teóricas, ou seja, o estudo da formação patriarcal brasileira, cujo cerne é a mencionada trilogia, e a série dedicada à lusotropicologia, vem se somar a monumental obra Sociologia, que começou a ser escrita em seu período de estudante nos EUA, entre 1918 e 1923, mas só foi publicada em 1945. Um enorme arco temporal que explica em partes a maturação da volumosa massa de informações desse outro clássico do pensamento brasileiro. Em mais de quinhentas páginas de tamanho duplo, mil páginas nos dois tomos de sua primeira edição, Freyre faz todo o percurso erudito, scholar e teórico da Sociologia no século 20, ressalta os equívocos e destaca o valor de determinadas teses. Em um diálogo que se dá com nomes que vão desde clássicos da antropologia como Kroeber, em especial o seu A natureza da cultura, o mencionado Boas, Simmel, Mead e Park, Freyre também transita pelo conceito de idealtypus de Weber e passa em vista os sociólogos e antropólogos ingleses e norte-americanos, as escolas alemãs dos neokantianos e culturalistas, tais como Cohen, Windelband e Cassirer, e, sobretudo, Rickert, egressos da teoria compreensiva de Dilthey.

Gilberto Freyre

Inédito
Como corolário, temos a publicação da segunda parte de suas memórias, De menino a homem, obra até agora inédita, continuação de Tempo morto e outros tempos. Nela a vida e a obra de Freyre se entrelaçam definitivamente. Pode-se ver em primeira pessoa sua impressão dos mestres que tivera quando convidado para dar aulas na Universidade de Colúmbia, a pedido do professor Alvin Martin. Entre eles Terman, Boas, Veblen e sua colega Ruth Benedict, que depois será uma antropóloga eminente. Seu contato com o famoso e ferino crítico literário Mencken. E o mais importante: os germes das pesquisas e idéias que o levariam à escrita de Casa-Grande & Senzala. A autobiografia, bem ao gosto freyreano, cheia de divagações, em um estilo que passa da descrição de personagens históricos a idéias teóricas e retorna aos cheiros, gostos e lugares que visitou, não deixa de fora nem alguns ingredientes picantes, tais como as experiências homossexuais do autor, na Alemanha, relatadas em uma franqueza confessional chocante. Isso demonstra que só mesmo um intelectual “algo anárquico”, como ele próprio se definia, mas ao mesmo tempo profundamente cioso da conservação de certas estruturas vivenciais e culturais, poderia ter escrito a obra que escreveu e analisado a cultura e a vida do Brasil com a sua agudeza.

Por todos esses motivos, segundo Freyre, ao deixarmos de ser ibéricos, por conseguinte rompemos com as raízes que nos forneciam o equilíbrio das contradições. Com os projetos desenvolvimentistas, teríamos passado, então, a uma visão planificadora da dinâmica social, que postularia uma possível superação dos antagonismos. Se tal superação é exeqüível, é uma pergunta que a história recente, todos nós em nossa vida cotidiana e todos os intelectuais estamos todos os dias tentando responder. Mas se o for, o será mediante uma visão unilateral do progresso que, como toda unilateralidade, sempre comporta perigos, que não são nunca pequenos. Provavelmente ela o seja, mas à custa da mutilação de um dos lados dessa moeda ambivalente que se chama Brasil. Do mesmo modo, poderemos transformar Gilberto Freyre em um autor politicamente correto. Poderemos expurgar de suas obras tudo aquilo que seja ofensivo à democracia, à igualdade das raças, ao equilíbrio, ao desenvolvimento, à mesura, aos bons sentimentos, à justiça social, à boa consciência, em resumo, à domesticação coletiva que todo progresso exige. Teremos o Brasil falsamente traduzido em um de seus aspectos. Teremos assim, finalmente, apenas uma face de Gilberto Freyre. Apenas uma de suas metades. Muito mais fácil de ser aceita. Muito mais fácil de ser compreendida e assimilada. Mas nem por isso, a melhor.

Rodrigo Petronio

É poeta e crítico literário. Autor de Pedra de luz, entre outros.

Rascunho