No volume de modesta espessura, publicado recentemente pela Companhia das Letras, e no qual espalham-se ausências e lacunas, o leitor tem a feliz surpresa de conhecer uma obra magistral da literatura latino-americana dos nossos dias: Noturno do Chile. No entanto, para também tristeza dos que virem neste livro uma preciosidade, Roberto Bolaño é autor já falecido, ainda jovem, no ano de 2003 em Barcelona, onde vivia. Depois de perambular por muitos países após o Golpe Militar de Pinochet, em sua terra natal, foi viver até há dois anos, em terras espanholas. Resta a nós, pobres mortais, ao contrário de esperar novas obras-primas do autor, nos deliciarmos com esta, o que definitivamente não é pouco. [Nota do editor: no fim do ano passado, foi lançada em língua espanhola a mais ambiciosa empreitada de Bolaño: o romance 2666, com 1.127 páginas, na edição da Anagrama (Espanha). Em breve, deve ser traduzido no Brasil.]
O tom confessional de um narrador envelhecido que conta sua história, no final da vida, ao não ter quase nada a perder, porém ainda cioso de alguns de seus valores e convicções, é técnica narrativa bastante atraente. Está no Salieri de Milos Formam, ao contar as peripécias do jovem, destrambelhado, e insuportavelmente genial Mozart. Está em Bentinho, ao narrar sua trajetória, suas suspeitas, os olhos de Capitu, as sombras de Escobar. Neste trabalho, logo no início, há uma frase grandiosa e ao mesmo tempo terrível: “Se só me faltassem os outros, vá, um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde. Mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”.
Apropriando-se da frase de Machado de Assis, pode-se dizer que o narrador de Noturno do Chile, padre Sebastián Urrutia Lacroix falta-se a si mesmo e esta ausência, permeada por todas as ausências que atravessam o livro de ponta a ponta, é o cerne de uma reflexão tão delicadamente elaborada, que deixa o leitor um pouco estonteado ao término da leitura. Padre Urrutia Lacroix é antes de tudo testemunha ocular e jurado destas sucessivas lacunas, e a não realização, a não conciliação dos universos, que em torno de si se fazem ou se desmoronam é tudo.
Em busca de uma verdade e de um conhecimento para si e para os de sua geração, Urrutia segue errando, no sentido peregrino do termo. Conhece Neruda, por meio de Farwell (que em inglês quer dizer adeus), renomadíssimo crítico de seu tempo de quem se torna amigo até sua morte, mais de vinte anos depois de se conhecerem. A imprecisão dos fatos marca também a narrativa, a cambaleante percepção descritiva da memória reina, visto ter-se passado tanto tempo, ou torna-se assim para ocultar os dados mais sinistros? Esta busca, jamais concluída, é já explicitada nas primeiras páginas do livro: “Um ano depois, aos catorze de idade, entrei para o seminário, e, quando saí, passado muito tempo, minha mãe me beijou a mão e me tratou de padre, ou julguei entender que me chamava de padre, e ante meu espanto e meus protestos (não me chame de padre, mãe, sou seu filho, disse, ou talvez não tenha dito seu filho mas o filho) ela se pôs a chorar, e pensei então ou talvez só pense agora, que a vida é uma sucessão de equívocos que nos conduzem à verdade final, a única verdade”.
Relevando o intraduzível jogo de palavras (em espanhol, as palavras para pai e padre são a mesma), a passagem mostra um distanciamento do narrador em relação a seus entes mais próximos e uma sucessão de não-entendidos que irá brindá-lo ao longo de toda sua história. A dualidade de propósitos e atitudes é outra constante no romance, o padre, além da carreira religiosa, abraça o ofício de crítico literário e a abstração de ser poeta. Escreve sobre os que estão à sua volta, mas sonha com a notoriedade de sua obra particular, seu esforço em se diferenciar dos escritores mais convencionais. Tem certo destaque como crítico, quase nenhum como pároco e absolutamente nada como poeta. Inveja, admira, despreza os que ele vai ao largo do caminho resenhando e conhecendo pessoalmente.
Os fatos políticos e históricos do Chile são panos de fundo para a narrativa. Um belo dia, o padre Urrutia é convidado por dois misteriosos homens (cujos nomes são as palavras ódio e medo escritos de trás para diante) a percorrer vários países da Europa em busca de técnicas de conservação das catedrais e descobre, estupefato, formas nada usuais, apesar de bastante simples, de manter os templos sagrados intactos. Ao retornar a Santiago, período conturbado entre a eleição e morte de Salvador Allende e a tomada do poder pelos militares, resolve reler os clássicos gregos e latinos e afasta-se completamente da discussão ideológica. Apesar de seu isolamento, os mesmos homens que o designaram à missão européia (há nestes momentos ecos de situações e personagens kafkianos), o convocam para dar aulas de marxismo para nada menos que a Junta Militar que dirigia o país, inclusive ao General Pinochet, que numa patética cena orgulha-se diante do padre por ter escrito três livros, todos sobre temática militar, em detrimento de Allende, que jamais houvera escrito coisa alguma.
A crítica ao regime, à apatia dos chilenos, à incapacidade da sociedade, como grupo, de se posicionar e fatalmente mudar alguma coisa para melhor, é feita de forma sutil e absolutamente integrada ao enredo da narrativa. Em nenhum momento chama a atenção do leitor uma intenção panfletária descolada do encadeamento dos fatos contados, nem de longe — o que se configura num mérito indiscutivelmente notável de Bolaño. Há uma ironia fina, uma melancolia difusa e uma atitude firme diante da incapacidade de resolução dos impasses, que está também ligeiramente oculta, no coração das trevas que se espraiam por este Noturno do Chile.
Quanto à melancolia, atualmente chamada de depressão — spleen para os românticos e simbolistas (Baudelaire, Shelley, Gonçalves Dias) — é tratada por meio da figura de um guatemalteco que vivia em Paris, figura arredia e aparentemente genial, descrita pelo amigo Farwell. Há inclusive a citação do livro mais conhecido sobre o assunto: “então don Salvador ou talvez Farwell, mas, se foi Farwell, foi muito depois, lembrou o livro de Robert Burton, Anatomia da melancolia, em que se dizem coisas tão acertadas sobre esse mal … talvez nesse momento todos os ali presentes nos calamos e dedicamos um minuto de silêncio àqueles que sucumbiram aos influxos da bile negra, essa bile negra que me abate e me corrói e me deixa à beira das lágrimas…”
Porém o livro não é este tratado de tristezas que pode ter parecido até agora, com as situações e trechos lembrados. Há um bom humor, mesmo que amargo, a alinhavar os relatos. Há uma fábula extraordinária, sobre um sapateiro suíço que propõe ao dirigente do Império Austro-Húngaro a criação de um parque para todos os heróis da nação, há trechos engraçados até, e há poesia, lirismo dissolvido entre desditas e arrependimentos: “No jardim de Là-Bas, junto de uma pérgula de madeira nobre, os convidados de Farewell ouviram Neruda recitar. Em silêncio, pus-me ao lado do jovem discípulo, que fumava com ar displicente e concentradíssimo, enquanto as palavras do ilustríssimo raspavam as variadas crostas da terra ou se elevavam até as travessas lavradas da pérgula e além dela, até as nuvens baudelairianas, que percorriam uma a uma os límpidos céus da pátria”.
Há uma coesão em Noturno do Chile, que se estende a todos os países subdesenvolvidos que através de esforços isolados tentam se impor, política, econômica e culturalmente sem sucesso consistente, salvo algumas manifestações isoladas e esporádicas ao longo dos últimos quarenta anos. Bolaño discute a inépcia coletiva de nações que se entendem soberanas, mas são meros joguetes nas mãos de forças maiores e displicentes. E o livro discute tudo isso com a elegância de uma narrativa acima de qualquer proposta de engajamento, palavra puída e praticamente desprovida de qualquer sentido, nos nossos dias.
Roberto Bolaño faz alta literatura, obras de arte com assinatura e endereço certo. Pelo menos, neste livro que aqui vos é apresentado. O que, definitivamente, não é pouco.