Atrocidades sem fim

Jennifer Clement registra em romance entrevistas feitas durante uma década nas áreas mais violentas do México
Jennifer Clement, autora de “Reze pelas mulheres roubadas”
13/06/2015

A realidade normalmente é mais cruel que a ficção — afinal, como comparar um fato real à imaginação? Em Reze pelas mulheres roubadas, Jennifer Clement inverte essa expectativa — e mostra uma ficção cruel e dura.

Resultado de 10 anos de pesquisa e entrevista com mulheres das regiões mais violentas do México, o livro relata essa realidade a partir do ponto de Ladydi, uma personagem fictícia da região de Guerrero. Como a própria autora disse em entrevistas, a voz dessa menina foi a maneira que encontrou para narrar, de seu próprio jeito, diversas histórias que ouviu durante sua carreira como jornalista.

Ladydi cresceu em uma sociedade esquecida por homens e até por Deus (para aqueles que acreditam n’Ele). Abandonada pelo pai na infância, foi criada pela mãe em uma sociedade em que adolescentes costumam ser roubadas e usadas como escravas sexuais pelos chefes do narcotráfico. Tanto que a maioria das famílias faz um buraco no quintal para que essas meninas se escondam em momentos de suspeita de perigo.

Na narrativa em primeira pessoa, Ladydi conta não apenas o que aconteceu com ela, mas com várias outras pessoas de sua região. À sua narrativa são acrescentas as histórias da mãe, das amigas de infância e de outras personagens que cruzam seu caminho. Aos poucos, a história adquire uma amplitude maior e a vida da personagem se torna um pedaço de uma grande trama de violência, tráfico e esquecimento.

Boa parte da narrativa se passa em Guerrero, uma cidade pequena e abandonada no interior do México. Não muito longe da fronteira com os EUA, muitos dos homens (pais e maridos) deixam a cidade em procura de uma vida melhor e normalmente não voltam. Formada basicamente por mulheres, o funcionamento da sociedade é organizado ao redor do tráfico de drogas. A polícia é negligente e pouco faz para combater a violência.

As ausências são muitas — além das famílias partidas, a cidade não tem infraestrutura: faltam hospitais, escolas, ruas e saneamento básico. Meninas são sequestradas por homens e nunca mais voltam; a população é frequentemente contaminada por químicos que deveriam ser usados para destruir plantações de papoula, mas são jogados em outras regiões para não interferirem na produção de drogas; cadáveres aparecem e somem sem serem questionados. Guerrero é uma cidade com ausências e presenças invertidas.

Em uma virada de enredo um tanto inesperada, a autora nos apresenta outros cenários, desde a casa suntuosa de uma família rica pelo tráfico à ala de detentas perigosas de uma prisão feminina — espaços que se mostram tão ou até mais opressores que a cidade esquecida.

Ladydi é curiosamente ambígua — e não por uma incoerência da narrativa. Ela é ao mesmo tempo forte e ingênua. Ela é criada em um ambiente árido e convive diariamente com escorpiões, insetos e até com a morte, resultados de uma realidade dura numa sociedade assolada pelo narcotráfico.

Por outro lado, é inocente em relação ao que acontece fora de sua cidade e seu ambiente. A ingenuidade da personagem fica muito evidente ao longo da narrativa. Só sabemos que algo ruim aconteceu quando é tarde demais até para a própria conseguir fazer alguma coisa. Mesmo antes disso, em alguns indícios de tragédia, Ladydi pensa não estar envolvida e prefere não ter nenhuma atitude.

Ainda assim, a personagem apresenta outra característica interessante. Mesmo narrando as tantas tragédias inesperadas da sua vida, ela não parece completamente surpresa. A sensação que temos é de que esse tipo de coisa acontece o tempo todo com os conhecidos da personagem. É como se fosse um caminho natural da vida.

Essa adaptabilidade à vida violenta do México gera um contraponto literário interessante. Juan Pablo Villalobos nos apresentou, no livro Festa no Covil, o pequeno Tochtli, filho de um dos chefões do narcotráfico mexicano. Ele também é acostumado a algum grau de violência mas, ao contrário de Ladydi, a violência raramente acontece a si ou aos seus. Pelo contrário — ele parece ser um espectador de tudo, que vê essas ações como parte natural da vida. Além disso, tem uma vida financeiramente mimada. Essas duas crianças parecem ser os dois lados de uma mesma moeda.

Ficção e realidade
A linguagem do livro é bastante simples — as frases são curtas e o vocabulário, fácil. Porém, nesse contexto algumas palavras se destacam. Uma delas é o neologismo enfeiar, verbo usado para a ação de deixar as meninas mais feias para não chamarem atenção dos traficantes e não serem, portanto, sequestradas. Outra palavra que chama atenção é Paraquat — o químico que deveria destruir as plantações de drogas —, uma palavra técnica presente na vida daquele grupo.

A construção da narrativa de Ladydi também parece simples, principalmente quando começa a contar a maneira com que ela e suas amigas vivem. Mas basta elas crescerem e saírem um pouco de seus esconderijos familiares para que uma rede de relações muito maior se crie — mesmo sem querer e sem perceber, essas meninas já fazem parte do tráfico.

Com suas frases e capítulos curtos, o livro flui assustadoramente bem, mesmo com sua história crua e cruel. A autora toca em temas duros e complicados. A leitura não é difícil pela sua linguagem, mas pela relação que estabelece com a realidade.

Usando a narrativa ficcional para abordar a realidade, Jennifer Clement toca em pontos muito importantes: a falta de segurança pública, a ausência do Estado, a negligência da polícia, a plantação em larga escala para produção de entorpecentes, a disfuncionalidade da justiça (e até da mídia), a falta de infraestrutura, a violência feminina, o abandono e o esquecimento.

Outro aspecto interessante é a questão feminina. A ausência de homens na região de Guerrero faz com que o livro seja predominantemente sobre mulheres. E essas personagens não correspondem completamente com o estereótipo feminino: não são frágeis, não querem estar sempre bonitas e cuidam das suas próprias vidas. Mesmo assim, elas sofrem grande violência. Estupro e espancamentos são relativamente frequentes.

Mesmo que a autora tenha optado pela narrativa para contar essa história, a sombra da realidade permanece durante toda a leitura. Sempre fica o pensamento de que um dos acontecimentos pode ter acontecido, mesmo que apenas em partes, com uma pessoa real — e que essa realidade continua existindo. Com sua escrita simples e sua roupa de ficção, essa narrativa é uma lembrança de que a realidade não pode ser esquecida.

Reze pelas mulheres roubadas
Jennifer Clement
Trad.: Léa Viveiros de Castro
Rocco
240 págs.
Jennifer Clement
Poeta, romancista e jornalista, nasceu em Connecticut, nos Estados Unidos, em 1960. No ano seguinte se mudou com a família para a Cidade do México. Estudou literatura e antropologia em Nova York e em Paris. Foi presidente do PEN México entre 2009 e 2012.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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