Atmosfera demolidora

Em “Coração marginal”, a narrativa de Cida Sepulveda remete à poesia e foge completamente ao lugar-comum
01/09/2007

Poeta e escritora, Cida Sepulveda explodiu. A expressão pode não ser tão elegante. Mas convém repeti-la, para que se acentue bem: Cida Sepulveda explodiu no melhor sentido da palavra e para o bem da literatura brasileira. Alguns carinhas marqueteiros que andam por aí com uns continhos chinfrins poderiam ler o livro de Cida Sepulveda para aprender e até melhor se situar diante da literatura deste país sem sorte. Esses carinhas que conquistam até prêmios importantes, já que a camarilha é generosa. O livro de Cida, Coração marginal é literatura pura, estonteante, exuberante, apaixonante. Retratos sem retoque de situações que nem todos vêem. São pequenos contos, em média de vinte linhas, com uma atmosfera demolidora e fulminante.

Cida Sepulveda sabe o que quer da literatura e isso se revelou no livro anterior, Sangue de romã, poesia de qualidade. Este Coração marginal pode ser incluído, sem erro, entre, os melhores livros do gênero publicados nos últimos anos, já que, além da estrutura literária, impecável, também é, sobretudo, humano, porque fala de gente envolvida numa solidão voraz. É preciso, também, destacar a narrativa que, em muitos casos, remete à poesia e foge completamente ao lugar-comum de alguns contistas que estão por aí cobertos pela “glória” dos amigos. Frases curtas, mínimas. Poucas palavras para expor situações inesperadas, doloridas, dolorosas, angustiantes.

Mas não é só desses temas que se faz o livro. Não. Cida Sepulveda busca sua história dentro do ser humano, lá onde estão escondidas as contradições, o irreversível, o que não tem saída, onde talvez a dor não se sinta mais, tão profunda. Cida explica que este livro representa, para ela, 30 anos de erros e acertos na arte de pintar com palavras. Cita Fernando Pessoa, na pele de Bernardo Soares: “Faço paisagens com que sinto”. Ela explica que, quando escreve contos, busca o enredo mínimo e a poesia máxima. Começou a escrever contos em 2004, depois de mais de dez anos de tentativas frustradas.

Este Coração marginal teve quatro versões, até chegar ao texto definitivo. O conto que dá título ao livro começa assim: “Página em branco e a latência do indizível”. Palavras incisivas. “A mesa está posta, mas não virá ninguém. O tempo é ruína afora quando nem o crepúsculo inventa tristezas”. Mais: “Vicejam noites na estrada abandonada. Buracos no asfalto e luas moribundas. Silêncio de inexistir. A estrada vicinal é adormecimento do tempo. Deserto a habita. Migalha de Deus”.

Imagens assim povoam o livro de Cida Sepulveda do começo ao fim, com histórias demolidoras retratando as cenas brutais que caminham sempre junto à vida. Cida não faz concessão a nada. Ao escrever estes contos, escancarou uma realidade nem sempre vista pelo olhar comum. Ela mergulhou fundo numa vida marginal que é uma ferida aberta, que sangra sempre, ferimento sem cura, chaga acesa num incêndio que não se controla. Aqui o que se vê é a força da palavra e da narrativa, a palavra de uma escritora rara nos tempos brasileiros atuais de tantos equívocos. Uma escritora acima de tudo honesta com ela mesma e com a literatura. Não é sempre que se tem ao alcance das mãos um livro assim.

Coração marginal
Cida Sepulveda
Bertrand Brasil
151 págs.
Cida Sepulveda
Nasceu na fazenda Cachoeira, em Piracicaba (SP). Atualmente, vive em Campinas (SP). Publicou o livro de poemas Sangue de romã, em 2004. Edita a revista de literatura e arte Vagalume (www.revistavagalume.com).
Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho