Atalhos de sonho

“Histórias de literatura e cegueira” tem no centro Borges, João Cabral e Joyce, mas sempre com a ficção se impondo
01/01/2008

Verdade e não-verdade; memória e desejo de esquecer; cegueira e consciência do fim, dos limites que a natureza, a imperícia humana ou o desenvolvimento da ciência nos impõem: desses pares insólitos nascem as narrativas que formam o volume Histórias de literatura e cegueira {Borges, João Cabral e Joyce}, de Julián Fuks.

Experiência metalingüística, hagiografia de um trio de escritores — unidos pela genialidade e pela cegueira — ou exercício dissimulado de crítica literária? Os três relatos rompem as estruturas dos gêneros tradicionais e incorporam, primordialmente, as características da ficção. O objetivo do autor vai além do ensaio biográfico — como os que Olivier Rolin, por exemplo, reuniu em Paisagens originais (Editora Difel) —, pretendendo recriar momentos de percepção luminosa, instantes que consumam ou desencadeiam processos essenciais na vida de cada um dos escritores escolhidos. E o faz subjugando os fatos presumivelmente amealhados — se confiarmos nas referências e na bibliografia apresentadas no final do volume — à força da imaginação.

Assim, é sobre Jorge Luis Borges que lemos na primeira narrativa, mas ao mesmo tempo não. Todos os elementos que compõem o que o senso comum já conhece sobre Borges estão ali: o labirinto, o tigre, o espelho, etc. Mas se houve a pretensão de biografar, ela foi inutilizada pela ficção. Se o autor incorreu na tentação de fazer crítica literária, esta foi igualmente pisoteada pela ficção. Esse ser e não-ser se repete com João Cabral de Melo Neto e James Joyce — eles também surgem como personagens nebulosos, miragens que nos oferecem, às vezes, a certeza de que os textos falam desses seres que um dia foram reais, amaram, desejaram, escreveram. Mas logo depois, às vezes na linha seguinte, tudo se desintegra, a ficção se impõe, aquele indício de certeza desaparece — e o leitor é condenado à dúvida, a um tipo peculiar de cegueira, no qual a névoa recobre a possível verdade com um manto de indistinção.

Na verdade, o próprio autor nos advertira, na breve nota que antecede as histórias: “[…] Nestas páginas, há espaço para o que se convencionou chamar de real, mas também para as especulações do provável e os limites do possível”. Trata-se, portanto, de um livro que nega suas próprias referências minuciosas e sua abrangente bibliografia. E temos a impressão de que todo esse material foi coligido com o objetivo único de exatamente ser negado. Bibliografia e referência transformam-se nas provas de que a história — inclusive enquanto ciência que estuda o passado — independe da verdade; de que não há nada mais inútil do que a verdade, até mesmo quando se trata de literatura. Não importa que os fatos apresentados sejam verdadeiros, pois são verdadeiros, ou melhor, verossímeis — e não importa se as narrativas encerram biografias parciais, pois todas as biografias, no final, talvez não passem de ficções.

Joyce, Borges e João Cabral, esses Homeros da era moderna, vates do mundo dessacralizado, reúnem-se não apenas sob o signo da cegueira — a característica marcante da figura mitológica que teria ditado a Ilíada e a Odisséia —, mas também do número três, aparentemente caro ao narrador: “O sagrado número três […], o número que fecha as coisas. A cifra que ignora a fatalidade do um e desmente a coincidência do dois”. Ainda que a suposta vidência ou a apregoada sensibilidade proporcionadas pela cegueira não passem de embustes, a simbologia da tríade de narrativas é evidente, mas apontando em outro sentido, como se a impossibilidade de ver congelasse o tempo, libertando o cego do fardo de acompanhar a inevitável decadência de tudo e de todos que o circundam — mas, por outro lado, condenando-o irremediavelmente a olhar para si mesmo, a conhecer os meandros de sua própria decadência. Assim, se o três é, de fato, como diz o narrador, “uma confirmação”, então se trata aqui da demonstração de uma verdade terrível, odiosa.

Destemor e conhecimento
À busca das similitudes biográficas soma-se a tentativa de recriar a linguagem própria de cada um dos autores escolhidos. Mas ainda que, em raros momentos, esse exercício de metalinguagem canse o leitor — refiro-me, principalmente, ao esforço de recriar o estilo de Joyce, o mais experimental dos três escritores —, a linguagem que enlaça os trechos recriados apresenta uma agradável dissonância em relação ao que se lê nas obras de parcela da novíssima geração de autores brasileiros: Julián Fuks mostra, sem pedantismos, que é possível utilizar o código lingüístico em toda a sua amplitude e não criar um texto arcaico, arrogante, retórico. É preciso destemor para, nos tempos atuais, não restringir a linguagem aos pobres limites da propaganda, do jornalismo, da conversa de botequim ou do bate-papo na internet. Destemor e conhecimento das possibilidades infinitas que a língua oferece — e que vêm sendo sistematicamente repudiadas em nome do ambigüíssimo conceito de “modernidade”.

Ficção sobre a ficção, círculo que se avoluma no formato de uma espiral para recriar novas realidades, as narrativas de Histórias de literatura e cegueira concedem à linguagem status de personagem, sem cometer o deslize de torná-la onipresente, invasora, mas outorgando-lhe um papel completador.

Diante de uma obra assim, que se pretende tudo e, no entanto, abraça delicadamente os objetos de sua paixão; e que incorpora a epistolografia, a poesia e a dramaturgia, encadeando todos os elementos com uma serenidade onírica, quais os caminhos possíveis ao leitor? Em que direção ele deve caminhar? Pesquisar, um a um, os volumes citados na bibliografia? Cotejar cada trecho, rastrear todas as pistas, todas as referências? Há muitos caminhos abertos. Mas espojar-se nos presumidos atalhos da verdade que o autor oferece guarda um caráter dúbio: decepcionará o leitor e, ao mesmo tempo, engrandecerá os textos, pois nada pode diminuí-los.

O que inova, contudo, às vezes também limita. E o livro de Julián Fuks está atado a essa contradição. Trata-se de um livro-experiência, mas também de um livro-limite — impossível de ser repetido, e além do qual Julián Fuks não seria mais Julián Fuks, mas Borges, Joyce ou João Cabral de Melo Neto.

Histórias de literatura e cegueira {Borges, João Cabral e Joyce}
Julián Fuks
Record
160 págs.
Julián Fuks
Paulistano e nasceu em 1981. Escritor e jornalista, é autor de Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu (contos, Editora 7Letras, 2004) e mestrando em literatura hispano-americana na USP. Foi colaborador da revista EntreLivros e do jornal Folha de S. Paulo.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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