Para que serve a poesia da nossa lastimosa atualidade literária?
Em primeiro lugar, para dizimar as matas e enfurecer o leitor bem intencionado. Raríssimos poetas fogem a esse propósito. E não são os paulistas com sua sofisticada chatice, tampouco os cariocas com sua vulgaridade de boutique. E se é assim, tanto lá, quanto cá, sobrevivem algumas exceções: Gullar, Ivan Junqueira, Astrid Cabral, Tanussi Cardoso, a eterna Orides Fontela… O resto é silêncio. Ou no máximo, uma ocupação para o Greenpeace e o idiotizado PV.
Longe demais das capitais emerge um poeta de verdade com suas “meias verdades”: as meias verdades de Luís Augusto Cassas. E para que inteiras se a metade é sempre indispensável? Em quase tudo, ao eliminarmos os excessos, chegaremos exatamente à metade. Da vida vivida, dorme-se a metade, de um jogo de futebol, a bola vive a metade e o que dizer da liberdade, esta besta ilusionista completamente descompromissada com a verdade.
As meias verdades de Cassas não cabem inteiras neste Em nome do filho, tampouco se esgotam em sua obra. Não estamos diante de um poeta bonzinho, simpático profissional do quilate de um Régis Bonvicino, Arnaldo Antunes, Chacal e a baboseira dos concretos anacrônicos. Cassas é pop sem perder o vigor.
A poesia-síntese de Cassas é na verdade o humanismo-síntese, ambos em extinção. E se Cassas lança a pedra fundamental da poesia síntese, não me falta a certeza de escassos companheiros nessa imprescindível edificação.
Em nome do filho é um livro traiçoeiro, tem várias caras nada simpáticas, permitindo que o incauto ou o despeitado extraia suas conclusões apressadas: “É um livro piegas?” “É um livro religioso?” “Um manual de auto-ajuda?” “Quer tirar proveito da poética da miséria?” “Cassas é o Sebastião Salgado da poesia?” “O livro é um guia das ruas de São Luís?” E por aí afora. O que fazer se Cassas é assim, um erudito, um homem que guarda em si, sem alardes, o melhor do espiritualismo-materialismo do oriente e do ocidente, um religioso, dono de um engajamento zen que o torna um dos raros autores livre da armadilha das imagens fáceis e romanescas.
Em nome do filho é o diálogo da lógica com a crença religiosa. No fórum: a consciência moral e poética de um homem simples, chocado com o descaso perpetrado por seres humanos que preservam pedra e aço enquanto negam o futuro a quem de direito; a infância, recinto da fragilidade, merecedora de toda proteção e carinho. No Em nome do filho, o leitor toma contato com um dos mais “antenados” autores brasileiros, dono de um humor dramático e irônico, sem deixar de ser um terno revolucionário. Não é necessário muito esforço para percebermos pitadas de Marx e Trotski ao longo de sua obra que chega ao décimo segundo título. Se em Grande sertão: veredas Guimarães Rosa mostrava o pacto do homem com o demônio, Em nome do filho, o homem religioso faz um pacto com a justiça. Ao mesmo tempo, todo o poema é a prova inconteste de que Cassas não desmente Borges ao também afirmar que a vida é poesia e poesia tem que ter vida.
Poucos poetas conseguem converter emoção numa estrutura coerente com os cânones literários e a simplicidade luxuosa da sua poesia, que muitas vezes não permite esse minucioso exame. Estou falando de um dos maiores poetas da atualidade, que já o é de há muito tempo. Mas por que poucos se ocupam em olhar para Cassas? Minha conclusão é simples e para os idiotas pode parecer simplória: Cassas é bom demais e mete medo na súcia corporativista que encerra os poetastros e, geralmente bem relacionados, ocupam o espaço que por direito não lhes pertence.
O poeta maranhense tem o misticismo dos personagens de Guimarães Rosa. Continua procurando a terceira margem do rio onde talvez se faça justiça ao valor de sua obra e a indiferença não atinja as crianças desprotegidas. Em nome do filho é o mais apropriado presente para o Natal, festa nefasta, que se avizinha. Época em que os governantes costumam recolher as crianças de rua, pois elas representam perigo à multi-covarde classe média. Tirando o poeta, alguém aí ao acaso, sabe o que desejam essas crianças? Não. Cassas não é um poeta da enxada, da foice, do computador, mas com ele a metafísica respira, pulsa, protesta, exige.
Nada é falso na sua poesia. Expõe as tripas do óbvio: governantes, a cada dia mais distante do povo, cabendo ao escritor transcender ao mesmo tempo em que denuncia o terror psicológico e objetivo que corrói a poesia, a ética e o futuro das crianças abandonadas à própria sorte. Cassas conquistará algumas consciências e talvez justamente isso o impeça de conquistar o mercado. Mercado, este íntimo das macaquices e avesso a um poeta/filósofo acostumado a investigar a lógica dos problemas humanos.
O leitor que ainda se preocupa com seu semelhante, só pode sentir prazer ao tomar contato com as insatisfações do poeta e o anúncio de sua irada profecia: “ai de ti são Luís/ porque o sol lançaste/ ao reino infantil/ tornando-o escarlate/ marcarei tuas portas/ com o sangue das gaivotas/ farei teus adultos/ descender de eunucos”.
O poeta engana, é sutil, prega peças no leitor mais atento, assim como Proust, que com seu aparente fascínio pelo universo de duques e duquesas, na verdade estava mergulhando nas profundezas da alma humana. Em nome do filho é um pequeno grande livro, denso e lírico. Nele, Cassas não perdoa sua São Luís, caso persista na sina de desrespeitar seus filhos menores: “ai de ti são Luis/ chora-te o barro/ seque o chafariz/ ao mirim desamparo/ emborcado ao chão/ mendigue a esperança/ até o maranhão/ amar suas crianças”.
O apocalipse social de Em nome do filho não reflete apenas as vísceras da infância pobre de São Luís. Revela o apocalipse do Sol e as manchas escuras da consciência humana.