As veredas do golpe

Romance de Danichi Hausen Mizoguchi retrata o Brasil que pavimentou a ascensão da extrema direita na última década
Danichi Hausen Mizoguchi, autor “Eterna fantasia”. Foto: Andre Cherri
01/10/2025

Um cansaço é o que basta para Maria; gastura de aeroporto, rodoviária, barca Rio–Niterói; saco cheio de reunião de duas horas ministrada no “tom professoral dos machos palestrinhas”, onde finge atenção a “um bando de tipinhos” com “sapatênis da Mr. Cat, MacBook Air e gráficos ridículos”, escapando do coffee break para evitar o papo vazio, a falta de novas ideias, a mesmice da “polêmica pela polêmica, polêmica parnasiana, sem pauta, sem utopia, sem sonho”. Enfim, em férias, vai para Cuba experienciar la revolución que moldou seu caráter ideológico, aspirar à cultura e aos valores que caracterizam sua formação intelectual. Sol, praia, mojitos, música boa, novas amizades — então, perto de ir embora, topa com um jornal que mancheta a votação, no Congresso Nacional, do afastamento da presidente Dilma Rousseff. Pega de surpresa, ela corre para uma lan house e, em frente a um computador velho, percebe ter vivenciado, nos últimos dias, a calma que antecede a queda, o silêncio antes da explosão, e todos os clichês e frases de efeito que, de maneira sagaz, contundente e provocativa, Danichi Hausen Mizoguchi incorpora em Eterna fantasia, uma mistura de romance de desbunde com registro metahistórico, uma captura radical do espectro sociopolítico que tomou vulto no Brasil na última década.

Maria é psicóloga, na faixa dos trinta anos, solteira, que trabalha numa ONG voltada à defesa dos direitos humanos. Gaúcha radicada no Rio de Janeiro, adaptou-se aos poucos ao caô do “sudestecentrismo provinciano de ex-capital”, pegando as manhas da cidade de “regras sem regras”, onde o bar é uma extensão do expediente, cervejinha e petiscos enquanto se joga conversa fora. Sua companheira fiel é Dulce, uma assistente social pernambucana, com quem partilha “desabafos, farras e alegrias”, encarando da pista de dança com beijação louca ao pé-sujo, de cadeiras de plástico e copo americano. É num desses que elas se dão conta das primeiras rachaduras brotando das manifestações pelos vinte centavos, dos atos públicos puxados pelo discurso de que o gigante acordou, pela mídia tendenciosa que vincula corrupção ao partido do governo vigente, pelas escandalosas pedaladas fiscais. Dias depois, são tomadas de assalto pelos panelaços e sentem a iminência do golpe, um entendimento ganhando lastro na multidão de que a solução para todos os problemas do país é o impeachment — como ocorreu na Alemanha nazista, quando “as massas não foram enganadas, as massas desejaram o fascismo”.

Embate
Então, durante uma comemoração num bar com um amigo, Maria saca um cara filmando-a com o celular. De repente, no meio de um comentário sobre o passado de luta de Dilma Rousseff contra a ditadura militar, o sujeito intervém com agressividade e xingamentos, berrando que os petistas não passam de uma “quadrilha de comunistas filhos da puta de merda”, um “bando de pão com mortadela” que, graças a Deus, foram varridos do mapa, que só o mito pode salvar agora, o insurgente Jair Messias Bolsonaro. Apesar de espantada, Maria retruca que o tal mito defende a tortura, no que o rapaz raivoso rebate que o melhor seria pegar “todos os barbudinhos, todas as feminazis, todos os veadinhos” e levar para o presídio de Ilha Grande para “arrancar a unha, dar choque, meter no pau-de-arara, quebrar ao meio”. Era a eclosão do ovo da serpente e, a partir daquele momento, o pensamento virulento, preconceituoso e antidemocrático da extrema direita não ficaria mais restrito ao submundo das conversas de alcova.

Danichi estabelece um movimento constante de entrelaçar as transformações sociais às turbulências da vida íntima de sua protagonista. Se o país começa a ruir, em seu trabalho a certeza de uma organização voltada para as necessidades das classes minoritárias, dos injustiçados e dos marginalizados também sofre ataques em suas bases. Após uma troca de direção, a continuidade das pautas e projetos executados com sucesso há anos é ameaçada por um grupo dissonante, cujas articulações internas subvertem as demandas regulares e espalham mentiras e intrigas, de modo que Maria passa a sentir como “se estivessem numa armadilha, numa guerra, numa jihad”. Seu refúgio se constrói no relacionamento imprevisto com Sofia, anos mais nova, mas que lhe empresta o entusiasmo inconsequente para afastá-la da apatia, da impotência do corpo prestes a colapsar a exemplo do mundo ao redor. Entre transas, conversas, ressacas e militância, elas firmam um pacto de coragem e resistência, trafegando por protestos e quebra-quebras, assumindo-se publicamente um casal, embora agora seja “um risco duas mulheres andando sozinhas de mãos dadas”, mas acreditando bravamente no poder do amor, pois “sem o amor a vida não vale a pena”.

Estilo nervoso
Não é sempre que um autor consegue representar, com precisão, a verve do conteúdo nos esteios do texto, implementando uma escrita tumultuária, de estilo nervoso, através de um jorro ininterrupto de frases que formam um grande painel movediço, a todo tempo transicionando entre realidade e ficção, a todo tempo mudando de rumo, saindo e voltando para o foco narrativo. Uma trama híbrida, sem concessões para o arranque da linguagem, que flerta com o humor, impõe seu traço crítico e explora os limites do engenho criativo na reconstrução da memória nacional. Sem se apegar a maneirismos formais ou à retórica circular do sermão panfletário, um confronto de ideias sobre violência doméstica permite uma intervenção cômica sobre as pegadinhas do Silvio Santos, e a reação ao apocalipse político vem na trilha do funk carioca e da axé music, com direito a todas as onomatopeias possíveis. Subvertendo os métodos convencionais, por meio de uma prosa livre, o relato parece usar da forma para instalar um contraponto ao próprio enredo que trata do recrudescimento do controle, da repressão, da censura. Do mesmo modo, o agente dos fatos é tão importante quanto o processo de contar a história na qual ele está inserido, fazendo de Maria uma interlocutora entre o registro e o acontecimento.

É pelos olhos dela, pelos altos e baixos de seus indicadores emocionais, que o leitor se transporta para o campo de batalha promovido pelos black blocs, o motim anárquico feito ao compasso de quem praticava um governo de exceção, perseguindo e inventando provas para prender adversários políticos, disseminando a alienação coletiva, o distúrbio cognitivo por meio das fake news, as redes sociais adquirindo uma instrumentalização para a indução do voto, para o retorno do regime militar num Estado de Direito. Lula é preso e vira alvo de memes; milhões de mensagens em grupos da família sobre o império pecuário e o carro banhado a ouro de seu filho; a defesa do “kit gay” nas escolas; a escolha da cantora Pabllo Vittar como candidata da esquerda. Daí acontecem as eleições de 2018, e a utopia que nasceu com a redemocratização escorre para o fosso de um sonho perdido: o retorno a um tempo que se queria sepultado, o filhote da ditadura e os esqueletos no armário instaurando um banzo, uma tristeza, a desilusão de uma geração que experimentou, sem o risco da proibição, o arroubo da juventude e cai de cabeça na frustração da vida adulta.

Há um raciocínio sistemático de que a História necessita de distâncias seculares para ser analisada de forma plena; contudo, a leitura (e os gatilhos que desperta) de Eterna fantasia não deixa dúvida de que, entre junho de 2013 e outubro de 2022, o Brasil atravessou os piores anos de sua existência. Um país que afiançou o próprio mal, que acreditou que as convulsões sociais seriam manobras de combate à corrupção, mas que, na verdade, foram táticas articuladas para a ascensão de um plano reacionário de poder. Danichi faz de Maria a personificação da oposição, da esperança de que resistir é o que “resta quando todo o resto acaba”. Evocando Vai passar, de Chico Buarque, “por mais que tudo acabe, por mais que tudo desmorone”, vai passar “porque precisa passar”, pois, assim como o causador da doença, a sabedoria da cura está no aprendizado do passado.

Eterna fantasia
Danichi Hausen Mizoguchi
Dublinense
224 págs.
Danichi Hausen Mizoguchi
É gaúcho de Porto Alegre (RS), radicado no Rio de Janeiro (RJ) desde 2005. É graduado em psicologia pela UFRGS, mestre e doutor em psicologia pela UFF, pós-doutor em políticas públicas e formação humana pela UERJ. Seu primeiro romance, Cinco ou seis dias, recebeu menção honrosa no Prêmio da União Brasileira de Escritores, foi finalista do Prêmio Rio de Literatura e vencedor do Prêmio Ufes de Literatura.
Sérgio Tavares

Nasceu em 1978. É autor de Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, publicado em Portugal com o título Equação sobre o abismo. Também publicou Queda da própria altura, antologia finalista do Prêmio Brasília de Literatura. Alguns dos seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Escreve sobre literatura brasileira e hispano-americana para jornais e revistas, além de editar o site A Nova Crítica.

Rascunho