“Pela primeira vez me senti protegido pelos muros do Colégio, compreendi o que era a sombra do lar.” Assim, Ernesto, jovem narrador do notável romance de José María Arguedas, Os rios profundos, publicado inicialmente em 1958 e relançado agora pela Companhia das Letras, sente-se, quase ao final de seu relato no regaço não de todo confortável do colégio em que foi deixado pelo pai para que pudesse ser educado. Na aldeia em que nasceu, tudo era propriedade de um único fazendeiro, nada era verdadeiramente seu. Por isso, a simples sombra de uma remota possibilidade de lar, para ele, era uma situação concreta, um local onde se reconhecer seguro e do qual poderia se sentir parte integrante, mesmo que parcialmente.
Ocorrem-me os versos de Vinícius de Moraes: “Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:/ não sei. De fato, não sei/ como, porque e quando a minha pátria/ mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água/ que elaboram e liquefazem a minha mágoa/ em longas lágrimas amargas./ Vontade de beijar os olhos de minha pátria/ de niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…” Numa nação cindida, cujo povo se divide e se busca, não sabendo bem onde e como, e talvez conhecendo os porquês, mas não os compreendendo exatamente, Arguedas, um dos mais destacados escritores peruanos do século 20, alinhava essa declaração de amor a um ente que, pela delicadeza que conduz muitas passagens do livro, tem nitidamente a intenção de acarinhar a sua pátria e passar-lhe a mão pelos cabelos.
As sombras imensas provocadas pela Cordilheira dos Andes sobre os povoados que Ernesto conheceu em companhia do pai, que errava de lugarejo em lugarejo, e as sombras projetadas na tela das desigualdades, vividas entre camponeses e habitantes das cidades, indígenas e descendentes de espanhóis, latifundiários e seus inúmeros agregados, tecem na observação do narrador um retrato do Peru na primeira metade do século passado. Como o Brasil, que viveu seus tempos de surto de desenvolvimento com Juscelino Kubitschek, o Peru, após sucessivos governos militares iniciados em 1930, em constante conflito com os apristas — liderados por Víctor Raúl Haya de la Torre, fundador do partido que deu nome ao grupo (Apra: Alianza Revolucionaria Americana) —, viu crescerem suas exportações a partir dos anos 50, numa política orientada por Washington, porém com aumento abismal das diferenças, já então bastante marcantes no país. O embate aparece em inúmeros momentos do livro, às vezes com mais sutileza e certa ironia: “Os poderosos não vêem as flores pequenas que dançam à margem dos aquedutos que regam a terra. Não as vêem, mas elas lhe dão o sustento”.
O livro de Arguedas expõe, com acurácia e um lirismo surpreendente, os pontos extremos deste impasse: de um lado os descendentes dos espanhóis conquistadores e a influência maciça da Igreja Católica; do outro, a música, que perpassa todo o volume num emolduramento delicado, que pode ser quase ouvido, tamanho é o detalhamento nas descrições de instrumentos e ritmos, além dos costumes dos povos dos Andes, herdeiros diretos dos incas, que dominavam boa parte do país antes da chegada dos europeus. Arguedas, que se suicidou em 1969, era bilíngüe quéchua-castelhano, e muitos cânticos, na língua dos índios, são reproduzidos no livro, com trabalho apurado de tradução de Josely Vianna Baptista — que, inclusive, enriquece a publicação com notas explicativas sobre termos e estudos mais detalhados sobre o autor.
Forças antagônicas
O fascínio de Ernesto pelos profundos rios que cortam as montanhas é outro elemento essencial do livro: o rapaz conversa com eles, pede-lhes proteção, identifica, pelo marulhar das águas, as mudanças climáticas e os presságios, por vezes bons, mas em sua maioria nefastos, que o zunido do vento, que se desvia nas rochas e ressoa no leito borbulhante pode trazer. As formações rochosas e as construções de pedras dos índios são também fontes de inspiração e temor; a magia de um lugar e de suas histórias, um lugar em que montes ditam profecias, demonstra a força de uma cultura que tenta, à força, sobreviver ao massacre do progresso.
Algumas descrições são preciosas: “O limão de Abancay, grande, de casca grossa e polpa comestível, fácil de descascar, contém um suco que misturado com a chancaca (espécie de bolo feito com açúcar mascavo) forma a iguaria mais delicada e poderosa do mundo. Arde e adoça. Alegra. É como se a gente bebesse a luz do sol”.
As forças antagônicas que se defrontam a cada momento aparecem em muitos níveis no romance, principalmente na postura dos religiosos. Ernesto, nos dois terços finais da narrativa, encontra-se interno no colégio, onde há uma constante luta entre os mais fortes por uma espécie de poder interno, com a subjugação dos alunos mais fracos. As brigas e atitudes dos mais velhos, para humilhar e sobrepujar os pequenos, são desconsideradas pelos padres, que mantêm a rotina de aulas e penitências, passando ao largo de muitos incidentes. Em uma ocasião, diante de uma diminuição dos estoques de sal, vendido para que fazendeiros alimentassem suas vacas, a população da cidade em que se situa o colégio, liderada por descendentes de índias, invadem o depósito municipal e organizam uma partilha do produto racionado. A atitude das mulheres é tão eficaz e poderosa que os guardas são rendidos sem que haja sequer derramamento de sangue. Muitas delas, então, partem para distribuir o sal entre os camponeses. Os padres atribuem tal atitude a uma influência do demônio e, em poucos dias, o governo central envia tropas para “restabelecer a ordem”.
Obras como Os rios profundos, alertam para o cerne violento das nações da América do Sul. Em 1956, por exemplo, João Guimarães Rosa, em meio às promessas de um Brasil próspero, os “50 anos em cinco” de Juscelino, publica Grande sertão: veredas, mostrando as entranhas do coronelismo, a lei da bala em detrimento da Constituição e das leis oficiais, que não existem nos grotões do país. Além da negação das forças internas de violência, as culturas regionais passaram a ser também sufocadas, tendo sua importância nacional diminuída. Em impressionante estudo denominado (Re)lendo a história, Roberto Reis, professor da Universidade de Minnesota, expõe os planos de nacionalização dos hábitos, no Brasil, como estratégia de escoar a produção industrial de eletrodomésticos recém-inaugurada no país e o golpe nas manifestações dos gestos e culturas regionais:
Esta uniformização acarreta pelo menos duas conseqüências dignas de relevo: a primeira delas, embutida no que ficou escrito, é que se fabricará uma nova ‘cultura nacional’, em que o adjetivo fica intimamente conectado com o mercado de consumo de bens simbólicos e com a extração de classe a que se vincula esta produção. […] A segunda é que as culturas regionais serão extremamente afetadas. Nem sempre estas subculturas (e o prefixo aqui não denota ‘inferioridade’) estão aptas a destilar este tipo de mensagem, mais colocada às necessidades da burguesia das metrópoles, visto que sua realidade cultural é bastante diversa daquela das capitais brasileiras.
Nas nações da América Latina, em cujas sombras são ocultados tesouros e segredos, o escrutínio do universo retratado em Os rios profundos é de fundamental importância. E quais seriam os mananciais para as águas que profundamente nutrem a exuberância deste bloco de países? Neste continente, cujas veias abertas foram magistralmente expostas por Eduardo Galeano, à parte a exploração sem fim perpetrada pelos navegadores ibéricos que arrendaram sucessivamente a sesmaria para holandeses, ingleses, japoneses e norte-americanos, deve existir uma matriz original que redime cada povoado, que justifica cada nação. Por meio da leitura de Arguedas, acessa-se este componente subterrâneo, as canções em quéchua, os instrumentos inusitados, a habilidade em ouvir a voz dos ventos, dos insetos e dos rios. No livro, com o risco do tifo, os colonos refugiam-se nas montanhas, sobem os Andes em busca de vida e de suas origens. Talvez tenha sido uma sugestão do autor para um caminho de equilíbrio entre a tradição e o progresso: sobreviver sim; crescer, certamente; mas jamais abandonar a identidade, de raça, crenças e dialetos, que dão a cada povo do Cone Sul uma pitada de originalidade, sua marca registrada afetiva num mundo diluído, repleto de infinitas trademarks. Uma globalização às avessas.