Em fins do século 19, início do 20, a literatura mundial nos deu a expressão mais bem acabada da angústia do ser humano em face de sua própria vida. Dentre tantos exemplos, parece ainda ecoar em nossos ouvidos as lamentações finais que Olga, Irina e Macha, as três irmãs de Tchekhov, lançam, abraçadas em desespero, num desejo de uma Moscou encantada e distante que lhes transformaria a existência medíocre, desejo soterrado pela vida ordinária.
O que acentua essa angústia não só é a impossibilidade da mudança, mas a terrível constatação de que essa dor brota de uma existência estável em recursos, às vezes até confortável (para os parâmetros modernos — e mesmo para a maioria dos homens); e o leitor sente a sensação incômoda de se ver conformado com essa vida enjaulada, antevendo ao mesmo tempo, no horizonte das possibilidades, que os sonhos alimentados (seja pelas três irmãs tchekhovianas, seja pelo personagem título do romance Ethan Frome, de Edith Wharton), são apenas miragens no deserto de suas vidas.
Por certo é esse dos temas mais universais da literatura moderna, e um diagnóstico preciso da eterna inquietude que assola a alma humana em todas as épocas de sua atribulada história.
Um “tranquilo desespero”
A sentença talhada por Thoreau, “a maioria dos homens vive uma existência de tranquilo desespero”, resume o espírito desse romance, conduzido com a escrita serena de Edith Wharton, escritora norte-americana de destaque no panorama literário de início do século 20.
No início do romance, antes mesmo de seu primeiro capítulo, somos levados a conhecer, do ponto de vista forasteiro do inominado narrador, a cidadezinha de Starkfield, na Nova Inglaterra, região ora castigada por nevascas e baixa temperatura, ora por chuvas vigorosas.
De passagem, prestando serviços em condições adversas, o narrador acaba necessitando dos serviços de transporte de Ethan Frome, um solitário e taciturno indivíduo dono de uma modesta propriedade nos arredores. A figura “que parece ter morrido e já estar no inferno”, as reticentes informações a seu respeito e os diálogos monossilábicos acabam por atrair mais o narrador em torno do mistério por trás do homem. A solução vem por vias oblíquas:
Ouvi a história (…) através de várias pessoas, e, como sucede geralmente em tais casos, de cada vez foi uma história diferente.
Passado esse limiar, o leitor é introduzido retrospectivamente no passado de Frome, num eixo dramático em que se encontram implicados o próprio, sua esposa Zeena e a prima desta, Mattie Silver.
Zeena é uma mulher doente e hipocondríaca que vive às voltas com a literatura médica e consultas com especialistas. O marido se vê responsável pelos seus cuidados, uma vez que Zeena fora seu principal auxílio no tratamento a sua mãe doente. Após o falecimento desta, Zeena de certa forma toma seu lugar (e não será a última…), num processo cíclico que acaba por cobrar seu quinhão de vida a todos ao redor, principalmente a Ethan.
Mattie passa a morar com o casal, em parte por se ver desamparada pelo restante da família, mas também pela conveniência da prima em ter com quem contar para os afazeres domésticos e demais cuidados. Encantadora, jovem e cheia de vida, Mattie é a nota dissonante num lar gélido, circundado de lápides dos antepassados dos Frome. Contudo, essa vividez assume a forma de gentileza e submissão num contexto que envolve a árida tratativa de sua prima.
Em meio a ambas, Ethan se configura mais que o esteio da família: é o homem dividido entre o compromisso familiar, o dever moral para com os que o cercam, e a plenitude da vida, os apelos ao passo libertário que, sintomaticamente, só pode ser dado para além das fronteiras de Starkfield.
A impressão, aliás, que a obra passa ao leitor no tocante a esse povoado é de uma região inóspita, onde a vida humana e suas interações entre si parecem confinadas dentro de uma espessa e abundante vegetação, castigada por um clima adverso a toda e qualquer expectativa:
Quando minha permanência já havia se prolongado um pouco mais — e vira esta fase de claridade cristalina seguida por longos intervalos de frio sem sol algum; quando as tempestades de fevereiro haviam erguido suas brancas tendas sobre a aldeia submissa e a furiosa cavalaria dos ventos de março havia desferido seu ataque para lhes dar sustentação — eu comecei a entender por que Starkfield emergia do cerco de seis meses como uma guarnição que capitulava sem quartel. Vinte anos atrás os meios de resistência deviam ter sido muitíssimos mais escassos, e o inimigo devia dominar quase todas as vias de acesso entre as aldeias sitiadas; e, consideradas estas coisas, senti a força sinistra da frase de Harmon: “a maioria dos espertos vai embora”.
É nessa Starkfield, cujo clima se impõe sobre as “aldeias sitiadas”, ou seja, os conglomerados humanos, circunscrevendo suas possibilidades, que o drama de Ethan Frome se desenvolve, num elo lógico entre conteúdo e forma, onde o leitor, numa estrutura narrativa cíclica, é convidado a deixar o presente do enunciado a fim de mergulhar no passado do homem apenas para compartilhar de suas frustrações e sonhos destruídos, para então retornar ao presente e entender os fundamentos da queda desse Ícaro agonizante, mas que ainda sobrevive. Sobre certo aspecto, a estrutura do livro espelha Starkfield, e vice-versa.
Ter o leitor desde o início contato com o fato consumado da vida de Ethan em nada atenua — antes intensifica — a consternação com sua trajetória, que é, em qualquer tempo, guardadas as diferenças contextuais, o drama que abate o ser humano, exaurindo-lhe as forças, por força do dever ou do pragmatismo da vida.
Tais efeitos se devem à forma segura e concisa com que a autora conduz a narrativa, a despeito da reviravolta pouco verossímil em seu desfecho e mesmo do escopo “modesto” (termo escolhido pela própria autora no prefácio para caracterizar a história). Seu universalismo e lirismo sobressaem, e são o principal trunfo da obra.
Estilo
Wharton, apesar de ter vivido em meio ao florescimento das vanguardas europeias e do surgimento de obras que repensaram profundamente as formas narrativas, como Ulisses e Em busca do tempo perdido, praticou uma prosa comparativamente simples, embora refinada, cujos ornamentos mais perceptíveis vêm das comparações e metáforas de grande expressividade e inventividade: “Os movimentos da mente de Mattie eram tão imprevisíveis quanto o esvoaçar de um pássaro nos galhos”.
Chama a atenção ainda os valores simbólicos de gestos comuns, reveladores de estados da alma e mesmo antecipatórios de sucessos vindouros:
A cadeira de balanço vazia de Zeena se erguia à sua frente. Mattie se levantou obedientemente e sentou-se nela. Quando a jovem cabeça morena se destacou contra a almofada de retalhos que costumeiramente emoldurava o semblante desolado de sua mulher, Ethan teve um choque momentâneo. Foi como se o outro rosto, o rosto da mulher substituída, houvesse obliterado o da intrusa. Depois de um momento, Mattie pareceu ser afetada pela mesma sensação de constrangimento.
A tradução cuidadosa zela por tais predicados, numa edição visualmente caprichada, em que pese o desalinho do texto com o formato do livro.
Ethan Frome é, enfim, uma chance para o leitor brasileiro ir além de A idade da inocência, ampliando seu repertório na obra de Edith Wharton, entrando em contato com uma prosa de elegante feitura.