A literatura gaúcha já esteve de namoro com o direito (décadas de 50 e 60) e, depois, com o jornalismo (70 e 80). Agora é a vez da publicidade. Autores surgem do ramo da propaganda prontificados a trazer uma linguagem mais direta, acessível, com ganas de público. Sem entrar no mérito e só para citar alguns, temos Martha Medeiros (Cartas extraviadas e outros poemas), André Takeda (Clube dos Corações Solitários), Magali Moraes (Buffet), Luiz Coronel (Concerto de Cordas), Paula Taitelbaum (Sem vergonha) e Ricardo Silvestrin (Palavra Mágica). Conhecendo o outro lado do mercado, eles carregam um talento natural em fisgar a atenção.
É o caso da Claudia Tajes, assim mesmo sem o acento, que está lançando seu segundo livro, o romance As pernas de Úrsula. Sua estréia com os contos Dez (quase) amores garantiu seu espaço entre as mais-mais da nova geração. Trazia um apanhado feminino sobre o universo masculino, grifando no título a situação de inconcluso e fracasso que contaminam qualquer relação idealizada. Claudia decidiu mergulhar na narrativa longa, invertendo o foco, revelando o que os homens pensam das mulheres. O assunto é saboroso: seduz todas as faixas etárias, dos leitores da revista Placar e Vip aos da Marie Claire e Cláudia. Quando pinta a combinação de tesão e manias de casamento, bate um interesse generalizado, comprovado pelo êxito da série Os normais na televisão.
As pernas de Úrsula conta a trajetória de um professor, Eduardo, que se rende aos joelhos torneados de uma desconhecida e começa a tumultuar sua união de quinze anos com Alice e complicar seu futuro com o filho recém-nascido, L. O protagonista encontra o pretexto para a fuga e passamos a acompanhá-lo do amor platônico às tentativas deliberadas de consumá-lo. Enquanto ele avança nos planos de adultério, vamos descobrindo as causas que o levam à derradeira implosão sensual.
SEMELHANÇAS — É a literatura da cumplicidade, da identificação imediata de costumes. Frasista impagável, Claudia Tajes antecipa o que o leitor pensa de si mesmo. Não há o desejo de transtornar e transformar o interlocutor, de levá-lo a uma outra esfera que não a de sua vida, de perturbá-lo com a imaginação. Trata-se do patamar de simbiose, do contrato da sensibilidade, das experiências que envolvem qualquer lar em crise. Isso não é ruim nem bom. Significa uma tendência da narração contemporânea em criar de saída a familiaridade, expondo uma intimidade pública mediante as desventuras do cotidiano. Explora o vínculo pela partilha dos recalques, sendo impossível permanecer alheio às encruzilhadas amorosas. “Não foram poucas as vezes em que eu me vi abandonado ao longo da vida. Quando minha irmã mais moça nasceu, eu perdi o lugar de caçula, o melhor na hierarquia familiar. Quando minha professora da terceira série, dona Márcia, largou a turma em pleno ano letivo para casar com um sargento de Rondônia. Quando qualquer garota se recusava a dançar comigo em uma festa, quando minha primeira namorada mais séria, a Letícia, me trocou por um punk chamado Eurico.(…) Mas só agora eu conhecia mesmo o que era a rejeição”.
O que singulariza a autora é a mordacidade, a veia satírica, a facilidade em definir em instantes o que demandaria horas de observação: “Do sofá, Alice e o Bebê L. me olhavam com tanta frieza que lamentei não ter trazido o capote”. Claudia não está para brincadeira, mas consegue rir baixinho das desgraças. Aquele chiste, riso inteligente, quase sussurrado, distanciado das gargalhadas apelativas e estridências. Passa uma transparência de quem repara em tudo e a todos com implacável censura. Algo como um vigilância onipresente, que gera a catarse das razões afetivas. Tomando um caso individual, desdobra a competição entre casais de amigos, na qual jantares se transformam em turfe de cães e onde os medos não são mastigados, e sim triturados. “Uma das coisas que mais me irritavam nas pessoas era a mania de chamar as outras por diminutivos”.
PROJEÇÃO — Sua prosa é arriscada, absorve os lugares-comuns e anseia reajustá-los em uma distinta ordem. Ao falar como um homem, abusa dos artifícios como jogo de futebol, a preparação de álibis, a consultoria de conquistas, à base de cervejadas na madrugada e casos sagazes de traições. Tenta revitalizar estereótipos, acrescentando alguma novidade. Na maioria das vezes, acerta, quando atinge o absurdo. “Sempre que penei por amor eu pedi uísque nacional para o sofrimento ser completo” ou “seu chevette é muito bom. Se essa menina não gostar, ela não serve para você” e ainda “Um pouco de romance, era disso que o nosso casamento precisava. Mesmo que fosse o meu romance com outra mulher”.
O trato com a disseminação pop é uma marca que ajuda a identificar as circunstâncias, porém pode instaurar uma falsa empatia. Ocorre um excesso de paralelismos, derivados da cultura geral e empregados na qualificação dos personagens, resultando numa série de referências como Marilyn Monroe, Sylvia Kristell, Cauby Peixoto, Sonia Braga, Michael Douglas e Ronald Biggs. O que fornece ares fugazes de crônica a um romance construído para perenidade. Talvez seja simultaneamente o defeito e a virtude do texto. Defeito, porque apresenta uma pressa de descrição; qualidade, pois confere agilidade e improvisação à turbulência pouco organizada de um divórcio.
As pernas de Úrsula fascina pela pretensão da coloquialidade. É um romance para leitura em voz alta, que prioriza os módulos teatrais das conversas. Transita entre o efêmero e a ficção com a mesma naturalidade, desencadeando a reflexão sobre a perpétua insatisfação com que somos. A luxúria de ser sempre um outro é que move a trama. Eduardo não se contenta com sua família e o pior nunca estará saciado pela projeção que faz de si, que não reproduz de forma fiel o que realmente é. “Eu havia feito tudo isso, mas não me sentia satisfeito comigo”. A possibilidade de ser um terceiro é maior que a vontade de prosseguir até o fim com a biografia planejada ao início. A fobia de envelhecer o impulsiona a testar sua virilidade fora do casamento, a provar que ainda é capaz de seguir seu instinto, mesmo que ele seja somente a vaidade de contar façanhas aos colegas. “Em poucos minutos, meu melhor amigo estava usando toda a sua experiência de homem descasado para tentar me ajudar”. Liberdade, segundo Eduardo, é não ter responsabilidade, exatamente o contrário na ótica de Alice, sua mulher.
Apesar de ostentar um ponto de vista masculino, o desejo poligâmico sempre é filtrado a partir de uma visada monogâmica. Quem fala na verdade é a esposa introjetada no marido. Predomina a percepção simultânea das aparências, o carteado verbal, a intuição, ingredientes que demonstram que o livro tem a marca da astúcia feminina (nunca feminista). De igual modo, o humor trabalha a autocrítica, evitando o lado meramente confessional e que destoa da comicidade exibicionista dos homens. A rapidez das frases de Claudia Tajes é sua elegância. Ela não escorrega no extremismo, muito menos engrossa a dicção para dizer umas boas verdades. Com um conjunto harmonioso, mostra que as mulheres sabem descobrir as pernas (nem tão curtas) da mentira.