As peripécias de Apolo

A poesia itinerante de Gerardo Mello Mourão o leva ao panteão da lírica ocidental
Em Gerardo Mello Mourão, o paganismo é apenas o sinônimo de uma forma suprema de liberdade
01/10/2002

Certa vez, um dos homens mais importantes que o Brasil já teve definiu Ezra Pound como sendo o maior poeta pagão do Ocidente cristão. Levadas em conta as raízes judaicas do autor dessa frase, e seus juízos críticos pregressos sobre o grande poeta de Idaho, seria forçoso convir que há em sua asserção um quê de despeito e de menosprezo pela sua excentricidade poética e política. Em um sentido totalmente inverso, ou seja, em uma chave de puro elogio, despido de quaisquer deméritos implícitos e ignorando as suas posturas políticas, que não me interessam, é mais ou menos com essas palavras de Otto Maria Carpeaux que tive vontade de definir Gerardo Mello Mourão após a leitura de uma só tacada de seu novo livro de poemas, Algumas partituras.

Nesse livro estão todos os temas caros a Gerardo, condensados com tal força e de tal maneira bem amarrados que podemos vê-lo como corolário e coroa de louros de toda sua obra até então. A começar pela própria essência itinerante desse poeta que, como Rilke, sabe que a poesia só nasce depois de conhecermos várias cidades, e que essa viagem pode ser entendida tanto em seu sentido literal quanto em uma chave metafísica. No caso de Gerardo, há uma fusão de ambas as dimensões: é o sertão real e físico do Nordeste e suas práticas que dão ensejo à primeira parte do livro, Suíte do couro ou Louvação do couro, mas é também toda a saga das famílias que viviam dessas atividades que lhe fornece a matéria de seus poemas de ritmos flexíveis e múltiplos, além de dar o ambiente existencial de onde ele retira o tom dramático e nostálgico desses personagens e tempos que não existem mais.

Esse espectro temático se expande e se abre no leque de poemas da segunda parte, De sibilas e labirintos. É nela que Gerardo dá seu salto mortale e dialoga com a tradição literária, sobretudo a de extração Ibérica, em poemas de metros e temas variados, e mergulha naquele repertório de mitos e referências gregas e latinas que lhe é tão familiar. Dentro do labirinto de enganos que a vida oferta e dos véus sob os quais a verdade se oculta, é em tons de desencanto e desconcerto que ele põe em cena a prisão de Camões. O frescor arcaizante e atemporal dos cordéis e da língua quinhentista e seiscentista são a Eurídice e a Ariadne que puxam os fios e guiam esse rito primordial, que consiste em nomear as coisas, aceder à luz e se libertar da cadeia de ilusões e aparências que simulam o real sem o ser propriamente.

É quando ouvimos a sua lírica por intermédio daquela voz oracular inconfundível, e a trama do tempo se suspende em várias linhas simultâneas: ora estamos em Delfos, ora andando pela Atenas da Antiguidade, ora em uma Frankfurt moderna ou correndo no meio-fio entre a memória e o instante, naquela margem do tempo imune à História, mas também alheia à circulação da morte, que é a habitação mesma do Mito. Porque toda a poesia de Gerardo se sustenta sobre essa verdade primeira, e é o atestado de uma filogênese e de uma ontogênese: nasce de uma busca ancestral dos nossos princípios fundadores, quer sejam eles meramente individuais, ligados à família, ao âmbito da vida privada e aos dados afetivos dos ancestrais, quer eles sejam telúricos e ontológicos, e tragam em si uma necessidade urgente de devassar e trazer à luz o esteio inconsciente e coletivo da memória da humanidade por meio desse murmúrio dos deuses, que é a palavra poética.

Semelhante àquele poeta que também é um pequeno deus, como já disse Vicente Huidobro usando essa palavra em uma acepção laica, alheia a quaisquer gnoses perigosas e ímpetos de Prometeu que queiram fechar em uma caricatura antropocêntrica e em uma teia de estruturas conceituais vazias aquela transcendência original que nos fundamenta, Gerardo conhece essas homologias; sabe que o poema, mais do que um atestado do Ser, guarda o Ser em si sem o encarcerar ou matar, pois o seu artesanato verbal é uma partitura e um instrumento para o sopro da poesia, um trampolim para seu mergulho consciente nos estados mais profundos da linguagem e do mundo. Eu disse instrumento, como quem fala flauta. Não estou dizendo que Gerardo tem uma visão instrumental da poesia, o que equivaleria a dizer que ele é um mau poeta. Em nada o aspecto pontual e estrutural do seu artesanato se vê comprometido com isso; ao contrário, essa visão é que faz dele o grande artista que é, porque não esgota as possibilidades da vida em um movimento circular onde apenas e tão-somente a técnica se evidencie e protagonize a sua viagem existencial. Gerardo prefere a companhia de outras pessoas e a variedade dos assuntos e dos matizes. Não é homem de uma mulher só, diria alguém mais malicioso.

A terceira estação dessa viagem é o Oriente, com Lira da China. Nessa partitura há a música delicada e o som das folhagens do país onde Gerardo foi correspondente de jornais brasileiros. Há também traduções de Tu Fu, Li Tai Po e Ts’en Shen, feitas com o auxílio do Padre Joaquim Angélico Guerra, entremeadas a adaptações livres dessa tradição milenar que o poeta de Ipueiras verte para o português preservando suas matrizes imagéticas e sonoras, e aquela apreensão direta de estados de espírito complexos, bem como a capacidade de sintetizá-los em um conjunto de traços essenciais, o que parece ser um dos aspectos mais marcantes da excelência da arte chinesa. E finalmente temos a última partitura dessa sinfonia ou desse moteto a várias vozes: Cartões postais. Nela, como na técnica da fuga per canonem, Gerardo retoma uma série de temas e lugares, e como um virtuose glosa o seu repertório de mitos e fábulas, atualizando-o aos climas das cidades de Nova York, Atenas, Belém de Judá, Belém do Pará, Praga, Rimini e Istambul. Essa talvez seja a parte mais pungente e forte do livro. Eis o seu mosaico elegíaco composto e recomposto sob os mais variados aspectos, e o canto órfico se valendo da voz humana para dar suporte ao Verbo e dizer que a poesia é a filha expatriada da humanidade e um dos possíveis laços de sua união, em um mundo que só se preocupa em acentuar de maneira inconseqüente e frívola as diferenças, quer culturais, regionais, artísticas, geográficas ou étnicas. A poesia, nascendo dessas diferenças e sendo a elas solidária, só pode amá-las de fato na renúncia, como o poeta que se nega como indivíduo em troca de uma máscara sem a qual não é possível encenar o drama coletivo da linguagem e dos homens.

A movência dessa pátria itinerante que nunca sai de si mesma, porque é a própria Língua Portuguesa, mesmo quando em confronto com outros povos e com outras línguas, traduzindo e adaptando motes e poemas que funcionam como pontos bordados no tecido infinito da literatura, mostra apenas o que é superficial e transitório na arte de Gerardo, como a superfície das águas de Heráclito ou a aparência do Ser Imóvel de Parmênides, autor que ele traduziu. Tudo bem meditado, o problema não é podermos ou não entrar duas vezes em um mesmo rio. Isso seria simples de resolver. Mas, se esse rio é sempre outro, talvez não possamos sequer entrar nele. Mas há algumas vias de acesso a essas águas invisíveis e praticamente intocáveis, e a essa torrente do Ser que como o tempo nos arrebata e como o tigre nos estraçalha, mesmo sendo nós mesmos o tempo e o tigre. Uma delas é a poesia, ponto cardeal dos miraculi e rosa mundi de esplendor efêmero, que às vezes nos mostra a Verdade para depois dissolvê-la entre os fatos ordinários, e faz exatamente disso a base de sua ironia e de suas ciladas. Às vezes ela é o centro que está em todas as partes, outras a circunferência que está em parte alguma; no seu ir e vir de um extremo a outro, do que há de divino no homem ao que há de finito na eternidade, perfaz a figura do círculo infinito que é Deus. Não sendo nem os fatos nem o puro espírito, não sendo o noticiário do jornal (embora possa estar nele) nem um conjunto de abstrações, não sendo necessariamente o que há de mais elevado no Ser, mas também sem poder prescindir dele em troca de fórmulas demasiado prosaicas, hoje muitas vezes rasteiras, a poesia segue o seu curso pela terceira margem desse rio intermitente de fozes largas e margens ignoradas, sempre prestes a estourar em alguma forma de música natural. E apenas os pobres de espírito e de inteligência, que nunca a contemplaram, me chamarão de idealista por causa dessas palavras.

A poesia de Gerardo sabe auscultar a música dessas esferas e o marulho misterioso dessas águas, e Algumas partituras vem para orquestrar esse concerto dos seres. Com o País dos Mourões, Gerardo deu à língua portuguesa uma prosódia e um tratamento do verso livre até então inexistente entre nós; sua inflexão épica, cuja matéria foi toda colhida no imaginário nordestino e na história da formação do Brasil, traçada sem qualquer tipo de nacionalismo ou regionalismo reducionista, também é ímpar no nosso contexto. A maior parte desse aspecto formal de sua poesia foi aprendida nas melhores escolas: T. S. Eliot e Ezra Pound. Ambos levaram-no a perceber com justeza e sabedoria que um verso nunca é livre para quem quer escrevê-lo bem, e que o chamado verso livre é apenas um deslocamento de importância, uma passagem do metro para ritmo interno da frase, e uma mudança na natureza da modulação: ao invés de nos guiarmos por acentos fortes e fracos, teríamos de pensá-los como uma sucessão de sílabas longas e breves. Seus conhecimentos de grego e latim o auxiliaram nesse intuito, e é essa base técnica que lhe deu a possibilidade de urdir seu amplo mural épico nos livros que se seguem, Peripécias de Gerardo e Rastro de Apolo, de 1972 e 1977, que juntos perfazerem Os Peãs, sua trilogia épica, e vir desaguar em Invenção do mar, de 1997, compondo assim as peças do panorama da América a que se propôs construir.

Às margens desse tom maior e do gênero elevado, Gerardo vem entretecendo sua lírica de fundo elegíaco, seus escritos políticos, sua ficção e seus ensaios sobre economia, letras e artes, entre tantos assuntos, reunidos no livro Invenção do saber, de 1983, que pede uma reedição urgente. Como ele mesmo diz, hoje os artistas, ao invés de aspirarem à glória, se estapeiam pela publicidade, a deusa cretina. Se o poeta cearense não tem um reconhecimento maior, é tão-só por não compactuar com essa contingência triste e com essa vulgaridade gritante do nosso tempo. Olhando para sua obra em um enquadramento amplo e tendo lido essas partituras recentemente estampadas, sentimos vontade de modificar a frase inicial. Gerardo é provavelmente um dos maiores poetas do Ocidente em atividade, e para ele o paganismo é apenas o sinônimo de uma forma suprema de liberdade. Sei o quão imprudente é dizer isso, pois pressupõe um conhecimento de toda a poesia ocidental feita hoje, o que é um absurdo. Mas também não posso negar que a vontade de dizê-lo é bem maior do que a prudência.

Algumas partituras
Gerardo Mello Mourão
Topbooks
126 págs.
Rodrigo Petronio

É poeta e crítico literário. Autor de Pedra de luz, entre outros.

Rascunho