As palavras e as coisas

"Pele e osso", romance do argentino Luis Gusmán, valoriza personagens e diálogos numa Buenos Aires suja e imoral
Luis Gusmán, autor de “Pele e osso”
01/05/2010

Um dos grandes nomes da literatura argentina contemporânea, Luiz Gusmán adota em Pele e osso uma linguagem direta e enxuta para contar a história de uma amizade improvável entre Landa, um vendedor de peles (El peletero, no título original), e Osso, um funcionário público acossado pela miséria. O resultado é um romance centrado nos personagens, de prosa seca e sem apelar para recursos sentimentais ou intelectuais.

O evento que inicia a narrativa ocorre quando Landa, ao abrir a loja numa manhã, descobre folhetos com propaganda do Greenpeace. Uma situação ordinária, mas que ele recebe como uma sentença de morte. No decorrer da trama, o peleteiro vai urdir uma vingança contra o grupo ambientalista que, por acaso, irá levá-lo a conhecer Osso, um “faz-tudo” que trabalha numa embarcação no rio Riachuelo.

Os dois homens, aparentemente sem nada em comum, são premidos pelo passado e por figuras femininas (“Tanto para Landa quanto para Osso, uma mulher tinha lhes transformado a vida. Transformado para pior.”).

Landa enfrenta uma batalha pela sobrevivência em um mundo que lhe é estranho, seja pelas tecnologias (peles sintéticas, computadores) ou pela consciência ecológica que ameaça sua atividade de comerciante de peles. Ao mesmo tempo, se sente preso à tradição familiar do negócio, que lhe custou um divórcio e uma vida solitária pontuada por sexo delivery e uma paixão por uma militante “verde”, que também o abandona.

Outro elemento que define o personagem, além do ofício, é a diabetes, que obriga Landa a seguir uma rotina de aplicações de insulina. Tal condição traz situações embaraçosas, como quando teve que se aplicar no banheiro de um posto de gasolina e foi confundido com um dependente químico.

Osso, ao contrário, vive numa favela com o filho de 12 anos de idade. Magro e viciado, foi abandonado pela mulher que, junto com outros quatro filhos, o deixou para viver com um pai-de-santo. Desde então, virou evangélico, sofreu um acidente que o fez perder a memória e, aos poucos, contempla um futuro tramado por forças sobrenaturais e pela criminalidade.

É o acaso que une as duas vidas errantes, esses dois argentinos de meia-idade e de hábitos diversos. Boa parte do romance é costurada por diálogos secos, algumas vezes ríspidos, entre os personagens. Eles se enfrentam, se ameaçam e chegam quase à agressão física. Contudo, um sentimento latente por amparo e a necessidade de cumprir vinganças pessoais — Landa contra os ambientalistas, Osso contra o pai-de-santo — forjam uma amizade: “Chegado o momento de se conhecerem, os dois descobriram que se necessitavam. Tinham uma coisa em comum: o mundo tinha se tornado estranho para eles. Entretanto, tinham chegado a este ponto na vida de diferentes maneiras”.

Borges
Gusmán pertence à cepa de escritores argentinos que, nos anos 1970, foi chamada de geração marginal. Sobre o grupo pesava o boom da literatura latino-americana, em torno de nomes como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Gabriel Garcia Márquez e Mario Vargas Llosa.

Alguns elementos que caracterizaram a literatura de Borges, por exemplo, estão presentes na obra de Gusmán, inclusive em Pele e osso, como os traços regionalistas mesclados a temas cosmopolitas. Entretanto, Gusmán e seus contemporâneos — Ricardo Piglia, Juan José Saer e Manuel Puig, para citar os mais conhecidos — procuraram se diferenciar na literatura por meio de experimentações de cunho formalista. Foi assim com os primeiros textos de Gusmán na revista Literal, editada por ele, e em seu primeiro romance, El frasquito (O vidrinho), de 1973, censurado pela ditadura argentina.

Os anos de 1980 assinalam uma mudança no estilo de Gusmán e o gradual abandono do estruturalismo literário em favor de uma escritura mais popular — como em Villa (1995) — e voltada ao estudo de personagens, caso desse último romance publicado no Brasil.

Animais
A consciência da linguagem, que caracterizou a geração de Gusmán, deixou bons resquícios em sua literatura atual. Ela tem um papel importante na composição dos personagens de Pele e Osso que, sutil, pode passar despercebida ao leitor. Tal jogo se manifesta numa relação entre nomes e coisas, símbolos e indivíduos. Os personagens do romance gravitam como “coisas” à procura de nomes que não somente as designem (que os “diga”, numa referência lacaniana), mas que também operem como senhas que possibilitem suas existências e materializem sua natureza espectral. São homens e mulheres que temem os símbolos, se esquivam ou lutam contra eles, ao passo em que clamam por significados.

Osso, em sua penúria, sequer tem nome, apenas apelido. Bem diferente de sua ex-mulher, Rosa Comte, citada sempre assim, com nome e sobrenome. Nesta identidade imperfeita, Osso parece destinado ao esquecimento, até acabar, ao contrário, se tornando num símbolo.

Landa, por outro lado, ao planejar o ataque ao Greenpeace, quer ferir um símbolo do mundo contemporâneo, numa tentativa de se tornar, ele próprio, um nome. Em encontros com prostitutas, se apresenta como Roberto, um advogado. Nas infiltrações no grupo, finge ser ambientalista, vestindo máscaras em passeatas — “Landa se sentia protegido atrás da caveira: não era ninguém e, ao mesmo tempo, sentia-se alguém”.

Relações simbólicas vão tecendo também relações éticas ambíguas entre os personagens. Como Verônica, amante do peleteiro, de quem o protagonista duvida da identidade e das histórias de traições ao marido. Tem-se a impressão de que são animais agonizantes, despelados, sobretudo quando Landa se refugia na câmara frigorífica da loja, em momentos de pânico e angústia. Ali, entre peles de animais mortos, ele está em casa.

Pele e osso
Luis Gusmán
Trad.: Wilson Alves-Bezerra
Iluminuras
224 págs.
Luis Gusmán
Nasceu em Buenos Aires, em 1944. Faz parte de uma geração de escritores argentinos que começaram a produzir nos anos de 1970, após o boom da literatura latino-americana, como Ricardo Piglia, Juan José Saer e Manuel Puig. Fundador da revista Literal (1973-1977), teve seu primeiro romance, El frasquito, censurado em 1973. Nesta obra, eram claras as influências do grupo vanguardista, que se interessa pelo formalismo russo e pelo estruturalismo francês. Nos anos 1980, aos poucos abandona o experimentalismo literário para criar obras ímpares em criatividade e construção narrativa. Escreveu outros sete romances, além de contos, ensaios, autobiografia e roteiro para cinema. No Brasil, foram publicados O vidrinho, Villa e Pele e osso, todos pela Iluminuras.
José Renato Salatiel

é jornalista e professor universitário.

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