Após a morte de Roberto Bolaño, em 2003, a literatura chilena tem recebido olhares curiosos de todo o mundo. Bicampeões de poesia, com o Nobel para Pablo Neruda e Gabriela Mistral, é sob a sombra de seu enfant terrible que os chilenos parecem viver. Não que isso seja ruim. O calhamaço póstumo 2666, lançado em 2004, virou um clássico e Os detetives selvagens (1998), uma espécie de acerto de contas de Bolaño com sua própria história, tornou-se rito de passagem para qualquer jovem escritor que quer se tornar um maldito.
Depois de Bolaño, Alejandro Zambra é o nome que representa melhor a produção literária do Chile pós-Pinochet — ainda que o primeiro tenha começado sua carreira durante os anos de ditadura. Ao contrário do patrono, Zambra é um escritor das miudezas, das situações cotidianas e do retrato daquilo que parece banal. Apesar da suposta simplicidade, narra a vida de homens e mulheres alquebrados, atropelados por um dia a dia que não conseguem controlar. São pessoas que chegam à idade adulta com os sonhos mortos e as esperanças trituradas.
Em Poeta chileno, Zambra retoma seus protagonistas fragmentados e à deriva. O romance narra as vidas de Gonzalo, um aspirante a poeta e homem e derrocada, e Vicente, enteado do fazedor de versos e um menino ausente de si mesmo. Na encruzilhada dessas duas existências, o autor constrói a história do seu próprio país, criando uma linha tênue entre realidade e ficção — algo que já havia experimentado em Formas de voltar para casa (2011).
Longe de ser uma narrativa histórica ou autoficção, Poeta chileno é uma catarse sobre fazer literatura em um continente que, cada vez mais, vira as costas para o que não é ignorância e egoísmo. Zambra, que sempre foi um exímio na criação de textos diminutos — mesmo em suas narrativas longas —, caminha agora por uma estrada mais densa. Se em Bonsai (2006) e A vida privada das árvores (2007) sua literatura era retilínea, centrada em poucos personagens, o chileno compõe um mosaico amplo e distinto, que mergulha na natureza psicológica de suas criaturas, entretanto, sem tentar encontrar uma justificativa óbvia para suas ações e pensamentos.
Ao mesmo tempo em que se debruça sobre as mentes de Gonzalo e Vicente, e também de todos que circundam os dois, como se tentasse caminhar em um labirinto de memórias, Zambra escreve um romance sobre o caminhar e o amadurecimento. Essa novidade tem um caráter dúbio, que não se resolve por inteiro.
Anteriormente, de alguma maneira, havia algo de estático, de pessoas inertes frente aos seus destinos. Em Poeta chileno, o movimento se dá, justamente, na perspectiva em que esses personagens transitam pelo mundo e pelas vidas uns dos outros.
Estranho no ninho
Todas essas inflexões, no entanto, resultam em sua obra mais fraca. Paradoxalmente, mesmo sendo seu maior romance, é também um livro menor. Existe, durante todo o livro, a sensação de uma necessidade de preenchimento que parece avulsa à história. Parte desses trechos problemáticos acontece nas reflexões que os poetas fazem com seus amigos acerca da literatura. Ainda que essa estratégia — de colocar na boca de terceiros os olhares do escritor sobre diversos temas — faça parte de toda a bibliografia de Zambra, em Poeta chileno algo não se encaixa com a mesma perfeição de antes.
Outro momento que soa enxertado é o encontro entre Vicente, já adulto, e Pru, uma intercambista americana no Chile. Ao encabeçar um choque cultural, o romance esbarra no pastiche da narrativa. Esse é outro artifício que Zambra já havia lançado mão antes, mas que agora se avoluma como um estranho no ninho.
— I am gonna eat your sweet pussy — diz Vicente, num inglês de merda, porque não sabe inglês, e o pouco que sabe aprendeu vendo pornografia.
(…)
Vicente tem dezoito anos e Pru, tinta e um, acabam de se conhecer: uma hora atrás, depois de um encontro meio tedioso num bar com seus amigos poetas num bar da Plaza Italia (…).
Poeta chileno está cheio dessa casualidade canhestra. O que era o forte em Bonsai ou nos contos de Meus documentos (2013), ou mesmo em Múltipla escolha (2014), aqui parece deslize. A despeito desses pontos delicados, Zambra ganha pela originalidade.
Herdando uma biblioteca
A literatura mínima que Alejandro Zambra burilou em seus primeiros livros é o alicerce de Poeta chileno. Se o romance se perde pelo excesso, pela tentativa desenfreada de condensar demais tantas variáveis e tantos personagens, há um toque interessante na linguagem. Essa expansão malsucedida não interfere na estética linguística. O escritor ainda é um sujeito a escrutinar aquilo que está despercebido, que passa ao largo do olhar.
Um dos momentos mais bonitos é exatamente quando Vicente percebe que herdou a biblioteca do ex-padrasto, que já vive em Nova York e se transformou em um estranho para ele — a antítese do que já foi narrado em A vida privada das árvores. A sutileza e a sensibilidade com que a cena é construída carregam o leitor pelas mãos e remete a outros dos melhores momentos de Zambra: quando Emilia e Julio, em Bonsai, liam juntos Proust. Nessas duas polaroides o chileno condensa todo o sentido da vida na relação com a literatura. São os livros que unem e desatam as relações.
Toda essa agudeza, que surge em todos os livros que publicou até agora, sempre se volta para as perguntas sem respostas deixadas pela ditadura militar, e que reverberam de maneira muito eficiente em Múltipla escolha. Ainda que discutam com certa abertura os anos terríveis após o golpe que derrubou e assassinou Salvador Allende, o Chile não se dá por vencido na tentativa de investigar o que pode restar desse desejo de sangue. Como se pode ver, é um cenário bastante diferente do que vive o Brasil, em que a tortura é negada e os torturadores recebem honras de Estado.
É impossível não sentir um gosto amargo ao comparar essas duas visões sobre períodos históricos muito parecidos. Poeta chileno não vislumbra toda a América Latina, é claro, mas oferece material suficiente para que o leitor seja capaz de criar um painel. Mesmo se perdendo nas entrelinhas, o mais recente romance de Alejandro Zambra é uma colcha de retalhos de ironias sagazes e de uma reflexão fundamental sobre o nosso continente.