As obsessões do gênio

"Prosa" apresenta os principais elementos da obra de Baudelaire: a visão apaixonada pela arte e pela literatura e o olhar aguçado para a vida contemporânea
Charles Baudelaire por Oliver Quinto
01/06/2024

O pintor da vida moderna. É assim que Charles Baudelaire, nome incontornável na lista de mais influentes poetas universais, refere-se ao artista Constantin Guys. Para Baudelaire, a obra de Guys capta a essência da modernidade — o transitório, o fugaz, o instante. Crítico passional, o autor de As flores do mal compara esse ímpeto ao conto O homem na multidão, de Edgar Allan Poe, escritor que foi uma das grandes obsessões do parisiense e do qual foi tradutor.

Um ensaio de crítica de arte, O pintor da vida moderna, traduz os principais elementos da obra em prosa de Baudelaire: a visão apaixonada pela arte e pela literatura, o olhar aguçado para a vida contemporânea e para as transformações da metrópole e a mobilização de referências que vão de Poe, autor estadunidense, até o pintor Delacroix. Acima de tudo, a defesa da poesia como meio de perpetuar a transitoriedade do instante.

No parágrafo final da crítica, Baudelaire escreve:

G. conserva um mérito profundo que é muito seu: cumpriu voluntariamente uma função que outros artistas desprezam e que cabia sobretudo a um homem do mundo cumprir. Ele procurou por toda parte a beleza passageira, fugaz, da vida presente, o caráter daquilo que o leitor nos permitiu chamar de modernidade.

Por um lado, as falhas de Baudelaire na crítica cultural são evidentes; muito próprias de sua época, em que se glorificavam ou aniquilavam artistas — ele trata Guys como um “escolhido” entre os seus pares, uma herança do olhar romântico sobre a arte. Por outro, o poeta parisiense pinta um autorretrato, elencando os pontos que o fariam chegar ao panteão da poesia mundial. Ao escrever sobre Guys, Baudelaire escreve também sobre o espírito artístico e literário de seu tempo, um zeitgeist que nos deu obras como o já citado conto O homem na multidão, de Poe, e As flores do mal, magnus opus do poeta.

Difícil definição
Bebendo na fonte do romantismo, ele ultrapassa as fronteiras do movimento, rumo a um ideal de poesia que transfigura a metrópole em profusão. Baudelaire foi um vanguardista, e como a maior parte dos grandes autores, é difícil defini-lo. Sua obra perpassa do simbolismo ao realismo.

A lírica de Baudelaire, um marco da modernidade literária, cultural e social, é consagrada por As flores do mal. Agora, o leitor brasileiro conhece sua contraparte: Prosa. O pequeno título — marca do gênero literário — apresenta um apanhado de textos esparsos, que vai de ficções até a crítica literária e de arte.

O destaque do volume, com seleção e tradução do poeta Júlio Castañon Guimarães, vai para O Spleen de Paris: Pequenos poemas em prosa. São cenas do cotidiano, personagens terrenos, pinceladas da modernidade e do transitório. Os textos curtos de Baudelaire guardam um ritmo próprio, com rimas internas e uma cadência bem recriada por Guimarães.

Se a magnitude de As flores do mal não bastasse, Baudelaire ainda é considerado o fundador de uma forma: o poema em prosa. Tirando da poesia o seu traço mais característico — o verso —, ele forjou o novo gênero. Francês por excelência, o poema em prosa influenciou nomes como Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé, cujas poéticas devem muito ao caráter baudelairiano. No Brasil, autores como Cruz e Souza, Murilo Mendes e Ana Cristina Cesar (com a companhia da Geração Marginal) apropriaram-se da autonomia do poema em prosa.

Quando Charles Baudelaire envia o trabalho para o romancista e poeta Arsène Houssaye, questiona o amigo:

Quem de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical mas sem ritmo e sem rima, suficientemente flexível e suficientemente contrastada para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?

Ele acrescenta que são das grandes cidades (Paris, por exemplo), seus cruzamentos e relações, que surge este ideal, chamado de obsedante pelo poeta — ou seja, a obsessão de Baudelaire vem do impulso de unir forma, conteúdo e matéria histórica.

Spleen é um conceito escorregadio e difícil de ser recriado para outro idioma. O título — último escolhido por Baudelaire, que pensou em nomes como O passante solitário ou O vagabundo — reflete a melancolia, a contemplação e a reflexão permeada pela tristeza, um estado tão pensativo quanto soturno.

Ligado também ao tédio existencial e ao isolamento; em especial, o da metrópole, o termo já havia sido relacionado aos poemas de As flores do mal. É notável que, embora o spleen seja um estado interno de consciência, ele está profundamente enraizado na alienação da vida moderna.

O flâneur
Uma figura se destaca: o flâneur, personagem central da literatura de Baudelaire — um tipo literário do século 19, quando o poeta vagava pelas boulevards parisienses. Passante, errante, caminhante. O flâneur é um observador da cidade, aquele capaz de captar os seus sentidos. Walter Benjamin, notório filósofo e crítico literário, voltou seus estudos para esse arquétipo, definindo-o como uma imagem da modernidade. Balzac, ainda no espírito do dezenove, chamou a flânerie (a prática do flâneur) de “gastronomia do olho”.

Em As multidões, um dos mais emblemáticos textos de Prosa, Baudelaire escreve: “Nem a todo mundo é dado poder tomar um banho de multidão: usufruir da multidão é uma arte”, afirmação que marca o ethos de sua obra — e acentua o olhar ímpar do passante, a figura de sensibilidade aguçada que se distingue dos demais da multidão. Vale ler um trecho do poema em prosa:

Multidão, solidão: termos iguais e permutáveis para o poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão, não sabe também ficar sozinho numa multidão azafamada.

O poeta usufrui do incomparável privilégio de poder ser, à sua vontade, ele próprio e outrem. Como essas almas errantes que buscam um corpo, ele entra, quando quer, no personagem de cada um. Apenas para ele tudo está desocupado; e se certos lugares parecem estar-lhe fechados, é que a seus olhos não valem a pena de ser visitados.

O passeante solitário e pensativo extrai uma singular ebriez dessa comunhão universal. Aquele que desposa facilmente a multidão conhece prazeres febris, de que serão eternamente privados o egoísta, fechado como um cofre, e o preguiçoso, aprisionado como um molusco. Ele adota como suas todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias que a circunstância lhe apresenta.

As multidões pode ser lido como a Ars Poética de Charles Baudelaire. Estão ali os principais motivos do escritor: o artista solitário, o isolamento, a alteridade e a visão singular. Acima de tudo, o poeta é elevado como um indivíduo ímpar que, ao mesmo tempo em que sente a solidão — e a transfigura em sua literatura —, é também capaz de experimentar ser um outro. O prazer está reservado ao observador, aquele que ultrapassa a essência alienante da multidão. Antes, ele precisa sair de si, ir para o mundo — em seu caso, Paris. Aí está o poeta e o inebriante, a poesia.

Repito que os poemas em prosa são o grande destaque do volume. Mas não deixa de interessar ao leitor que o autor de As flores do mal foi, para mencionar, amador na arte do aforismo — dando-lhe um tom, por vezes, excessivamente ácido.

A novela A Fanfarlo vale a leitura, ainda que esteja aquém dos textos curtos de Baudelaire. O conflito reside no desejo do jovem poeta Samuel Cramer, um dândi, pela dançarina Fanfarlo. Cramer tem sido lido pelos críticos como um autorretrato de Baudelaire. Já Fanfarlo seria sua musa, Jeanne Duval, atriz e dançarina nascida no Haiti. Duval já figurou até na pintura de Édouard Manet, amigo do poeta, no quadro La maîtresse de Baudelaire (A amante de Baudelaire, 1862).

O ensaio Paraísos artificiais, no qual o autor discorre sobre três substâncias inebriantes — o ópio, o vinho e o haxixe —, também é notável. Mas como lembra o tradutor Júlio Castañon Guimarães na introdução da coletânea, é difícil não concordar com um dos principais estudiosos do escritor francês, Claude Pichois, que afirma que o ensaio é obra de um “poeta para todos os que consideram que a única verdadeira droga, a droga absoluta, é a Poesia”.

O crítico
Já o exercício crítico de Baudelaire merece análise cuidadosa. Ele se apresenta em duas frentes: a crítica literária e a crítica de arte. Descontados os elogios hiperbólicos do poeta, suas observações revelam um olhar apaixonado pela cultura. Daí, mais do que de seu juízo de valor, vem a preciosidade do conjunto.

Os comentários sobre três escritores se destacam. Seus conterrâneos franceses Gustave Flaubert e Victor Hugo, além do norte-americano Edgar Allan Poe. Baudelaire elogia Madame Bovary (1856), a “aposta” de Flaubert. Para ele, o romancista consegue despojar-se de seu sexo e “fazer-se mulher” — o que ressoa a conhecida declaração de Flaubert: “Madame Bovary sou eu”.

Além disso, ele adota uma visão alinhada com a Estética, a “arte pela arte”, defendendo o romance de seus acusadores. “Uma verdadeira obra de arte não tem necessidade de libelo”, escreve. Ou seja, não há necessidade de um personagem que represente a moral, pois a literatura não tem obrigação alguma com a moralidade.

Sobre Hugo (Baudelaire escreve que ele exercia uma ditadura sobre os assuntos literários em sua época), é enfático: “Talvez seja simplesmente porque a Alemanha tivera Goethe, e a Inglaterra Shakespeare, que Victor Hugo fosse legitimamente devido à França”. Na visão do poeta, Hugo expressa o “mistério da vida”. Ele prossegue sua exposição, na qual o autor de Os miseráveis (1862) seria o mais universal dos artistas:

A música dos versos de Victor Hugo adapta-se às profundas harmonias da natureza; escultor, ele recorta em suas estrofes a forma inesquecível das coisas; pintor, ele as ilumina com a cor própria delas.

Baudelaire admirava profundamente Edgar Allan Poe. Para ele, a pátria de Poe não era digna do escritor. Os Estados Unidos, na visão do francês, era uma terra materialista, quase monstruosa, dominada pelo capital e com rancor da Europa. Quando se desloca para a crítica de arte, Baudelaire escreve sobre o Salão de Paris, exposição anual de arte organizada no Salon d’Apollon, no Museu do Louvre. Delacroix, seu pintor favorito, é referido como “o mais original dos tempos antigos e dos tempos modernos”.

Vale uma pequena observação (pequena, ao contrário de Prosa, com suas 1.008 páginas). A edição da Penguin Companhia costuma servir bem a estudantes, pesquisadores e leitores que desejam se debruçar com mais atenção sobre as obras. A coletânea de Baudelaire, por exemplo, tem introdução do tradutor Júlio Castañon Guimarães e apêndices da acadêmica Rosemary Lloyd e do escritor e artista plástico Émile Bernard. Mas, o formato e o material da Penguin não funcionam bem para Prosa (em termos físicos) — o grande número de páginas dificulta a leitura na encadernação típica da coleção. A divisão em dois tomos poderia ter sido uma boa pedida.

Charles Baudelaire — o flâneur parisiense, observador atento das multidões — saiu de cena há mais de 150 anos. No entanto, sua literatura é prova do êxito de sua visão artística: a escrita do transitório. Assim, ele é eterno e sublime. Prosa mostra o êxtase de um dândi devotado à poética, mesmo quando o verso está ausente. Baudelaire deu a seu tempo vislumbres do futuro, um traço de modernidade.

Prosa
Charles Baudelaire
Trad.: Júlio Castañon Guimarães
Penguin Companhia
1.008 págs.
Charles Baudelaire
Foi poeta, prosador, crítico literário e de arte. Nasceu em Paris em 1821. É um dos principais nomes da literatura universal. Em 1857, publica sua principal obra, o conjunto de poemas As flores do mal, um marco da lírica moderna. Tradutor, verteu para o francês Edgar Allan Poe, com destaque para as Histoires extraordinaires. Seu livro de poemas em prosa, Le spleen de Paris, sai apenas postumamente. Morreu em 1867.
Giovana Proença

É pesquisadora na área de Teoria Literária da USP.

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