O ano: 1968. O lugar: Paris. Ao tentar entrar no grande auditório em que o professor Theodor Adorno ministrava sua aula, os jovens revolucionários e libertários foram impedidos pelo professor alemão. De forma alguma a posição era definitiva. Em um tempo onde era proibido proibir, aquilo soou como uma afronta. Como assim? Um gesto autoritário diante de quem estava construindo um novo mundo? De quem reivindicava o direito de sonhar? Inconcebível. Extrapolando os limites da Sorbonne, o caso tornou-se público: todos, intelectuais, professores, estudantes, e, em particular, o filósofo eleito por aquela geração, Herbert Marcuse, protestaram. O fato seria discutido por muito tempo. O professor Theodor Adorno pagaria por sua posição: seu gesto seria visto como uma traição e sua obra sofreria com isso. Mas, hoje, passados mais de 45 anos do ano da grande utopia, como interpretar uma posição como essa? Não há como fazê-lo sem voltar um pouco na história, mais exatamente para anos decisivos, ainda hoje, na vida de todos nós.
Um mundo em ruínas
Entre 1946 e 1947, a guerra havia acabado; os horrores, não. Com a ocupação da Alemanha, campos de concentração, espalhados por todos os cantos do país, eram descobertos. E, diante do que se conhecia, tudo parecia menor. Não se tratava mais de guerra e destruição, apenas, como nas guerras que se sucederam ao longo da história: a barbárie, agora, surgia em toda sua crueza, através dos relatos e das imagens dos campos e dos sobreviventes — especialmente estes. Nelas, o que assombrava não eram apenas os rostos famélicos ou os corpos empilhados, mas a sistematização do processo, realizado por anos a fio com precisão burocrática.
Em um cenário como esse, era natural que todos se perguntassem como aquilo havia sido possível. Não era essa, então, a civilização de Goethe e Wagner, Durer e Nietzsche, Berlim e Viena? Não havia por trás dessa civilização mais de quatrocentos anos de ciência, poesia, cultura, música, educação, tecnologia? Sim, era; sim, havia. Mas os trens, a administração do processo, os registros, a distribuição pelos campos, a utilização da ciência médica, tudo demonstrava algo aterrador: a civilização do progresso também poderia ser a civilização da crueldade absoluta, organizada a partir dos parâmetros de eficiência organizacional criados e aprimorados por essa mesma civilização.
Com o passar do tempo, tentar-se-ia explicar o que havia acontecido de muitas formas, seja como loucura bizarra, neurose social, psicose coletiva, ou, simplesmente, nostalgia mítica. Todas, e cada uma destas explicações, no entanto, revelar-se-iam, assim que formuladas, apenas tentativas inócuas de explicar o inexplicável. Ou, quem sabe, formas seguras e confortáveis de colocar-se diante do problema. Pois o enigma, ao invés de esclarecer-se, tornava-se ainda mais perturbador.
Tudo demonstrava algo aterrador: a civilização do progresso também poderia ser a civilização da crueldade absoluta.
Artista no front
A melhor resposta para essa questão, assim como para tantas outras, viria (ou vem) sempre de outro campo: o campo da arte. Nesse não se buscam as sínteses redutoras, as simplificações monoteístas e utópicas, que nos ajudam a explicar as coisas pelo padrão métrico ou metafísico; para a arte, e a arte verdadeira (aquela que não se resguarda diante de um problema), importa só uma coisa: complicar um pouco mais a questão. Pois, como já havia dito William James, só através da complicação se chega à simplicidade.
Curiosamente, um dos trabalhos artísticos mais contundentes sobre a questão da guerra e do nosso tempo foi feito não com a distância histórico das décadas que se seguiram a ela (a guerra), mas no seu apogeu, isto é, no período que vai de 1944 a 1947, incluindo os anos finais e o final catastrófico do conflito (particularmente para os perdedores). A obra não é uma pintura ou escultura. Trata-se de um livro, um estranho livro, escrito exatamente nesses três anos por um filósofo, mas um filósofo que, nessa obra, atinge o apogeu do escritor.
Exilado na América, o alemão Theodor Adorno já havia provocado uma revolução no pensamento europeu, ao oferecer, junto com seus parceiros e amigos, Walter Benjamin e Max Horkheimer, uma visão heterodoxa da filosofia e do mundo em que viviam, visão que incluía algum fundamento de marxismo mas, em especial, um talento e uma capacidade incomum para compreender todos os aspectos da cultura do seu tempo. Não flertavam com a ficção, não pretendiam escrever romances, novelas, contos. Podem ser vistos como pensadores, mas sua obra é de artistas.
Walter Benjamin, que morreria de forma patética em 1945, com 50 anos apenas, ao tentar atravessar a fronteira germânica, já havia escrito seus livros-ensaios sobre cultura e arte a vida contemporânea; A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica é, ainda hoje, um texto fundador para qualquer artista ou crítico; mas seria em um livro escrito durante muitos anos que ele se superaria: com mais de mil páginas, Passagens é um mosaico digno de figurar entre os clássicos da literatura do século 20. Sua estrutura é construída a partir de uma desestrutura, isto é, uma coleção de fragmentos de todos os gêneros, científicos, críticos, literários, de observação, estranhamente conectados. Um tesouro.
Adorno, que já havia escrito sua Teoria da estética, escolheria outro caminho. Ao contrário de Benjamim, que se utilizava de uma colagem livre de notícias, fatos, pensamentos, Adorno escolheria um formato fixo: os aforismos. Com essa escolha, alinhar-se-ia a uma tradição que havia tido em Nietzsche seu exemplo mais recente e fulgurante. Mas se o filósofo de Turim localizava o nascimento da tragédia na cultura, Adorno vivia o momento mais trágico dessa cultura e dessa civilização. Por isso seus aforismos não são a descoberta do pessimismo, ou uma apaixonada reflexão sobre o sentido da existência, como alguém definiria Nietzsche, mas, isso sim, fragmentos de uma clara compreensão do que acontecia, em uma civilização que, há mais de 300 anos, via a desaparição da classe que a constituiu — a burguesia — e a dissolução, lenta e gradual, dos princípios que ela legaria, os principais liberais.
Obra-prima
Em seus 153 aforismos, divididos em três partes, Minima moralia disseca o mundo dos últimos 300 ou 400 anos em todas as suas pequenas e grandes particularidades. Em outras palavras, Adorno escreve sobre tudo, do grande ao pequeno, de Hegel ao cinema, de estética a espiritismo. E sempre com uma densidade e honestidade estonteante.
Fala, por exemplo, do amor e do casamento como algo que só existe hoje (isto é, naquele tempo) como negócio ou contrato. Duvida da inocência, não acredita nos pequenos prazeres e na realização através das pequenas coisas. Acha que mesmo uma expressão tão inocente quanto Oh, que adorável! torna-se uma afronta para uma existência tão espantosamente ultrajante, como é a do homem contemporâneo. Nos diz que se identificar com a fraqueza do oprimido é afirmar, queiramos ou não, uma pré-condição de força, além de desenvolver no identificado a violência, insensibilidade e sangue-frio,
Considerando tudo isso, não restaria, segundo ele, para o intelectual, outra alternativa que não fosse o isolamento inviolável. E isso em uma época onde todos os seus pares — isto é, outros intelectuais — ou comprometiam-se ou viam-se comprometidos com o engajamento, a tal praxis, mais tarde eleita por Marcuse a mola-mestra do movimento de 1968. Alguns compromissos assumidos por intelectuais importantes, como Heiddeger, valeram-lhes um longo e penoso processo de preconceito histórico.
Adorno preferiu o afastamento. Buscou uma visão implacável, mas, paradoxalmente, ética do mundo em que vivia.
Livro difícil
O primeiro aforismo é para Proust, mas não fala necessariamente de Proust. Seu foco é a forma com que o intelectual encontra seu lugar na sociedade através do deslocamento, da inserção atravessada. Todos os outros aforismos partem de um título, que é sempre algo inusitado — ou uma citação de livro, deslocada de contexto, uma frase de música alterada, um dito popular transformado, ou mesmo um pensamento filosófico distorcido.
Onde Hegel diz: O todo é a verdade, Adorno replica: O todo é o falso.
O lugar em que ele se situa é insustentável para um filósofo, mas essencial para um artista. Sua matéria-prima, nessas 153 peças literárias, é o paradoxo, a ambiguidade, a contradição. Não há a necessidade de resolver, mas apenas o desejo de expor, complicar. Mostrar que o que consideramos trivial, banal, está repleto de sentido, e nem sempre positivos. Como os desconhecemos (isto é, os sentidos) eles podem nos levar a lugares que não imaginamos, cobertos sob o verniz da inocência.
Esse é o mundo que Minima Moralia nos apresenta: completo e desprovido de qualquer máscara. Curioso é que, ao mesmo tempo em que aprofunda algumas feridas, ele cicatriza muitas outras. Ao final (se é que existe um final para tal livro, onde tudo são começos) percebe-se a intenção da obra: um bom e salutar tratado sobre virtudes e modo de viver; sobre um mundo que não acabou com a Segunda Guerra, pelo contrário, só confirmou tudo aquilo em que havia se transformado a civilização: uma completa substituição e anulamento do indivíduo pela estrutura seriada.
Numa suposição absurda, imagino que se Adorno fosse vivo ainda hoje e alguém lhe dissesse que essa análise só valeu para o que aconteceu até a Guerra, ele daria um sorriso irônico e preferiria não responder.
A recusa
Em um tempo de tantas certezas como aqueles de 1968, não havia dúvida de que a posição do professor Adorno representava o que havia de mais odioso no pensamento. A urgência de mudar criava um frenesi incendiário. E não eram apenas pneus e barricadas que queimavam: facilmente queimavam-se reputações. De um momento para o outro, o mais comprometido de todos os intelectuais poderia ser cunhado com o pensamento mais temido: reacionário.
Tantos anos passados, já não temos as mesmas certezas daquele tempo. Pelo contrário: quando olhamos para trás, só crescem as nossas dúvidas. Se ouvirmos, lermos e olharmos com atenção para tudo que as manifestações artísticas nos dizem, só há uma conclusão a tirar: talvez fosse importante considerar o paradoxo, a ambiguidade e a incoerência como partes constitutivas do humano. Mas isso significa, também, abrir uma brecha difícil de preencher, porque aberta em um terreno formado por convicções aceitas por séculos.
Nesse sentido, Minima moralia é uma máquina perfuradora, ao mesmo tempo em que uma esfinge, mas não uma esfinge monolítica, como aquelas às quais nos habituamos a pensar. O enigma que ela propõe não está escondido; ele vive na superfície, exposto diante dos nossos olhos. Por que não o enxergamos é uma questão difícil de responder. Mas ao ler as frases lapidares, construídas como pequenas esculturas, encadeando-se umas nas outras de forma tortuosa, até compor o aforismo, vem a impressão de que não a entendemos simplesmente porque a ideia contrária não havia sido formulada.
Chamar de ética ou moral essa aventura do intelecto é reduzir o poder artístico de uma obra como Minima moralia aos ditames da filosofia. Até porque Adorno, no final do sexto aforismo, da primeira parte, intitulado Antítese, diz que, diante da degradação da existência privada, em função do massacre da indústria cultural, não há saída que não seja o estrangulamento.
Diante dele, o único curso possível é um só: desafiar o misuse da própria existência. Quanto ao resto, restaria comportar-se na vida privada da forma mais modesta, sem ser obstrutiva e despretensiosa possível. E isso não mais pelo desejo de ser feliz mas — pasmem, são palavras dele — pela vergonha de ainda ter ar para respirar, no inferno.