“Eu entendo a noite como um oceano/ que banha de sombras um mundo de sol.” O trecho inicial da canção Beira-mar, do compositor paraibano Zé Ramalho, pode servir como epígrafe à leitura de A noite enigmática e dilacerante de Augusto dos Anjos, de Henrique Duarte Neto. No estudo acerca da obra do Poeta do Hediondo (também nascido no estado da Paraíba), Henrique destaca nela o símbolo da noite — traduzida como enigma e perda —, dando a ver como ela se instaura à maneira de motor e espírito no Eu — um dos livros mais densos e originais da literatura brasileira.
O ensaio, decorrente da tese de doutoramento de Henrique Duarte, é divido em duas seções, sendo cada uma pautada pela simbologia que a noite assume nos poemas de Augusto dos Anjos. Apesar da divisão, todo o estudo segue uma linha comum, com três enfoques especiais a respeito da poética em questão: a) interpretá-la em proximidade às estéticas deformativas do Simbolismo, do Expressionismo e do Surrealismo (sobretudo as duas primeiras); b) ressaltar (e este, a meu ver, é o item de maior importância do estudo) seu caráter anti-retiniano, demonstrando, com largo alcance, que as referências da realidade aqui instituída confrontam-se com o conhecimento racionalista, mas sem que isso caracterize absoluto ilogismo ou abstração; c) reconsiderar a leitura feita por Ferreira Gullar, para quem a poesia de Augusto dos Anjos tem forte inclinação à concretude.
A começar por esta última, convém, a título de esclarecimento, citar o excerto do ensaio de Ferreira Gullar — Augusto dos Anjos ou morte e vida nordestina — tomado por Henrique Duarte Neto em forma de mote a ser glosado, cujas palavras figuram logo na abertura da seção A noite como enigma. Diz o autor do Poema sujo:
Augusto dos Anjos é um poeta do Engenho do Pau d’Arco, da Paraíba, do Recife, do Nordeste brasileiro, do começo deste século [o 20]. Essa não é uma referência meramente biográfica, externa à sua obra. Não: sua condição de homem, concreta, histórica, determinada, informa os poemas que escreveu, e não apenas como causa deles, em última instância: é matéria deles. Com Augusto dos Anjos penetramos aquele terreno em que a poesia é um compromisso total com a existência.
Henrique tem a lucidez de não descartar a tese de Gullar, ao mesmo tempo em que apresenta autonomia para não repeti-la: “Estas considerações (…) serão tratadas aqui com certa ambivalência: ao mesmo tempo que (sic) vou ao encontro, afasto-me delas (ou, pelo menos, procuro redirecioná-las)”. O redirecionamento dado a esta perspectiva implica justamente em conceber a poética augustiana como deformadora do real entendido como concreto. Se por um lado seu vocabulário mantém-se ligado à cadeia do significante e do significado, do termo de representação e da coisa representada, logo sinalizando para um mundo identificável por todos, por outro seu discurso traduz a experiência agônica de alguém que sente a existência de modo particular e radical, como se lê em As cismas do destino, do poeta — “Recife. Ponte Buarque de Macedo./ Eu, indo em direção à casa do Agra,/ Assombrado com a minha sombra magra,/ Pensava no Destino, e tinha medo!/ (…)/ Lembro-me bem. A ponte era comprida,/ E a minha sombra enorme enchia a ponte,/ Como uma pele de rinoceronte/ Estendida por toda a minha vida!” —, e se reitera nas palavras do ensaísta: “O que se almeja é ir além das aparências, penetrar no reino do que é inalcançável ao simples olhar físico, a uma perspectiva meramente figurativa”.
Cobertores da noite
Em Augusto, como se poderia supor em cotejo com os nossos românticos, a linguagem agônica não se casa à mera confissão depressiva. A exemplo de uma admirável linhagem de artistas ocidentais que fazem de suas perplexidades, a um só tempo, forma artística e interpretação transfigurada do real (a estampa, na capa do livro, d’A noite estrelada, de Vincent van Gogh, não é acaso ou coincidência), Augusto entranhou-se em suas trevas — “Sou uma sombra!”, diz Monólogo de uma sombra, texto inaugurador do Eu — para inventar e reportar um existir em tudo cercado pelos cobertores da noite:
O morcego
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra parede…”
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
Esse traço original de Augusto dá ocasião para que Henrique Duarte Neto chegue a algumas de suas melhores considerações. Costuma (penso especialmente no Ensino Médio) ser inevitável o questionamento acerca do que distancia ou aproxima Augusto dos Anjos dos poetas ultra-românticos. Nestes, via de regra, a expressão da tristeza, a evocação da morte e do sonho e o entoar do corro passadista revela o desejo de transcendência do espaço e do tempo em que se encontra o sujeito poético; no autor de Versos a um cão, o que se afigura inclinação ao movimento (“Subi talvez às máximas alturas,/ Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,/ É necessário que inda eu suba mais!”) é, no entender do estudioso, constatação do caos mundano, indicação do limitado alcance de hipotéticas verdades e, paradoxal ou conseguintemente, busca por conhecimento efetivo do mistério: “Podemos ver, neste ponto, que sua poesia não se propõe a ser, como poderia parecer a uma leitura mais superficial, como deslocamento do mundo, mas sim como tentativa de conhecimento deste”.
Destaco ainda o que, se não compromete o estudo, por vezes obstrui sua solidificação e possível leveza. O texto claro e organizado de Henrique Duarte Neto — já muito bem evidenciado em O humor cáustico no universo da meia-palavra: sátira e ironia na poesia de José Paulo Paes — tem excesso de citações. Não se pode negar a importância do embasamento teórico quando da edificação de uma tese, sem o que o estudioso pode revelar soberba ou ingenuidade, mas é salutar que o pesquisador busque um ponto intermediário para não pecar pela escassez, tampouco pela via oposta. No decorrer das 120 páginas do livro imprimem-se nada menos do que 248 notas de rodapé (média superior a duas notas por página), muitas delas com textos alongados e, num ou noutro caso, de relevância duvidosa, o que interrompe a fluidez discursiva que costuma fazer bem às densas dissertações acadêmicas.
Posto isso, A noite enigmática e dilacerante de Augusto dos Anjos é uma consistente e interessante colaboração à respeitável bibliografia consagrada ao Poeta do Hediondo. Cumpre lembrar: o livro chega em momento propício, pois neste 2012 se completam 100 anos que Augusto dos Anjos (dos anjos que vivem nas sombras) cravou na tela de nossa história literária as marcas bruscas de suas convulsas noites.