Questionar, a essa altura da história da humanidade, por que a figura autoral feminina esteve quase sempre ausente da tradição literária torna-se um ato obsoleto. (Ou talvez não, bem consideradas as perspectivas que o patriarcalismo propicia a um observador interessado.) Se, então, o que realmente conta são as consequências, mais do que as causas, uma questão que se impõe é quantos talentos femininos esse patriarcalismo conseguiu destruir no decorrer dos séculos. Se porventura Shakespeare tivesse uma irmã de igual talento, não seria de se lamentar que esta estivesse relegada à obscuridade, sem nem mesmo sonhar com os louros obtidos pelo ilustre irmão?
É uma hipótese alarmante, embora válida, e a perspicácia de sua formulação cabe justamente a uma das ficcionistas mais afamadas e talentosas da literatura mundial: Virginia Woolf.
Em Um teto todo seu (em tradução de Bia Nunes de Sousa e Glauco Mattoso, num projeto gráfico bem sugestivo da editora Tordesilhas, enriquecido ainda por um posfácio de Noemi Jaffe e excertos do diário de Woolf), a escritora divaga por essas e outras veredas do pensamento, abertas pelo amplo tema “As mulheres e a ficção”, proposto a ela pelas faculdades inglesas Newnham e Girton, à guisa de palestra a suas alunas em 1928. Da revisão e condensação dos dois artigos originais resultou o livro em questão.
Pensamento abrangente
Tão fascinante quanto ler as obras de ficção de um escritor talentoso é ter a oportunidade de conhecê-lo para além das personas narrativas que assume; é palmilhar seu raciocínio, vê-lo elucubrar sobre uma questão controversa, para a qual mobiliza os argumentos mais rigorosos. Chegamos assim mais próximo do seu sistema de pensamento.
É o que ocorre em Um teto todo seu. A despeito de a escritora adotar em parte substancial da obra o pseudônimo de Mary Seton (alusão à balada Mary Hamilton, do folclore escocês), o que acompanhamos, através de um estilo muito peculiar que envolve fluxo de consciência, digressões, ensaísmo e retórica, são os pensamentos da autora e mulher Virginia Woolf.
O “ensaio” (o termo, a meu ver, não abrange esteticamente a obra) divide-se em seis partes e é concebido como uma longa reflexão de Mary Seton durante um dia. Seguimos suas sensações e pensamentos enquanto é repreendida por um bedel ao caminhar pelo gramado do campus da faculdade de Oxbridge, ou quando é enxotada da biblioteca por outro, pois “só se admitiam damas na biblioteca se acompanhadas por um estudante da universidade ou munidas de uma carta de apresentação”. Paralelas a tais interferências, as considerações de Mary em torno do tema da palestra, do ambiente primaveril e da movimentação das pessoas ao redor prosseguem com uma recalcitrância irônica. Recurso ficcional não gratuito.
Concomitante a esse plano enunciativo, onde acompanhamos a gestação da tese, entre digressões coesas e intervenções externas, temos o plano “presente”, quando Woolf dirige-se a sua plateia, instando-a a refletir. De início, o tema da palestra se revela “um prisma” através do qual muitos caminhos se tornam possíveis:
As mulheres e a ficção poderia significar (…) as mulheres e como elas são, ou as mulheres e a ficção que elas escrevem, ou poderia significar as mulheres e a ficção escrita sobre elas (…)
Esse trecho estrutura o livro em suas partes, revelando-lhe a abrangência. É, por exemplo, da opinião (e dissenso) de historiadores, de sábios como Goethe e figuras como Mussolini que trata o segundo capítulo. Se há alguma verdade no que diz respeito à problemática feminina, não são os homens que a poderão fornecer, suas visões impregnadas de narcisismo, recalque, idealização ou complacência.
Tampouco as criaturas femininas tão vivas nas peças de Shakespeare viabilizam alguma luz, em face do contraste que há entre elas e as que, sob o regime patriarcal elizabetano, viviam de tal maneira em desigualdade com os homens que a célebre hipótese da irmã do Bardo é aventada no capítulo três.
O caminho para a questão “As mulheres e a ficção” centra-se então na figura autoral feminina. Lançando mão de sua erudição e de remissões históricas, Virginia Woolf investiga, dentro da tradição literária inglesa, os inícios da relação mulher/escrita, das produções de Lady Winchilsea, de Margaret de Newcastle e outras escritoras de menor expressão, passando pelo grande quarteto Jane Austen-Emily Brönte-Charlotte Brönte-George Eliot, até chegar a Marie Carmichael.
Emancipação
Sem dúvida esta é a medula do livro, porque é dos desníveis estéticos observáveis entre as autoras que Woolf solidificará a ideia de preeminência estética como emancipação feminina; emancipação mais efetiva que “o ‘feminismo notório’ de Rebecca West”, que se aplicado à ficção e à poesia redunda em literatura ressentida, tão distante da escrita “desimpedida” de Shakespeare e Austen.
Mas há um preço a se pagar para que esta preeminência seja alcançada e o desenvolvimento espiritual da escritora se efetive, e este não poderia ser mais material: uma pensão mensal e um cômodo particular. Literatura de fibra não pode ser produzida em meio a passos intrusos, ou com uma exígua experiência mundana. Alguns podem relembrar Camões e outros infortunados escritores a quem a miséria não obstou a manifestação do gênio, porém, mesmo o menos favorecido teve acesso a uma educação basilar que, durante muito tempo, foi negada às mulheres. Em suma: das contingências mais materiais se extrai as condições que dão vazão ao trabalho espiritual do artista, como o ócio produtivo e o “enclausuramento” que escritores como Proust tornaram célebre.
E não seria, enfim, a imortalidade literária o remate ideal para a repressão social, bem como para a estreiteza literária que apequenou a escrita de tantas autoras seminais?
Eis aqui porque Virginia Woolf, através de uma escrita irônica e rigor de ideias, não incorre em sectarismo ou complacência em Um teto todo seu; mais: conseguiu marcar com tintas indeléveis seu nome no cânone mundial.