Em toda saga civilizatória há o registro da angústia essencial a rodear o homem — o vazio que ele persegue sem sucesso há milênios, ora na pretensão de suavizá-lo, ora na expectativa de esquecê-lo, sempre uma busca de algo que está além do alcance dos sentidos e do intelecto.
Foi exatamente esse nada que deu origem às religiões, que traziam, entre outras funções, teses para a razão de existir do indivíduo e para o acerto final de contas, garantindo ao homem o sossego das certezas. Elas juram que, atendidas certas circunstâncias, o ser humano “encontrará a salvação”, “irá para um oásis repleto de virgens”, “atingirá o nirvana”, “ascenderá para um plano superior”, “se unirá à energia do universo”, entre outras soluções sempre muito boas.
O fato, infelizmente, é que ninguém comprova nenhuma dessas promessas. Só o que remanesce é a tal incompletude que devora as horas de ócio dos jovens, a madrugada dos poetas, a tranqüilidade dos velhos e a mansidão das mulheres, lembrando-nos a todo tempo da solidão e finitude da vida. Afinal, como Bertolt Brecht já dissera, há que temer menos a morte do que a vida insuficiente.
Exercício poético
Adotando esse tema perigoso, por sua magnitude e profundidade ímpares, Fabrício Marques acena com a criação de poemas sob a égide do vazio, do nada inaugural de onde viemos e para onde devemos retornar. Com esse panorama original, abro seu A fera incompletude, resultado do projeto editorial contemplado pela Funarte no Programa de Bolsas de Estímulo à Criação Artística — Categoria Criação Literária, em 2008.
O autor estrutura os poemas em dois grandes capítulos: “os trabalhos” e poemas-reportagem”. Em grande parte dos poemas, o autor invade as brumas, escuta o insondável, divisa o invisível, observa aquele nada de perto — sente o seu hálito de fera:
Respiro nas palavras
Que se exaurem sem sombra, e estou
Vivo, disfarçado de morto,
De louco, de palhaço, de mim mesmo.
A esmo escolho meus abismos.
Perdi, e um pouco mais
Seria ganhar. Precisamente.
E nenhuma nuvem dura mais
Do que essa ausência
Que se precipita no azul.
Fabrício experimenta poemas metrificados e versos livres, poemas em prosa e prosa poética. Até aí, no registro formal, não há incongruências, ele passeia com desenvoltura por formas e estilos, trazendo para seu contexto a crônica, a ironia, uma bela espécie de mini-conto poético (como é o caso de Achei o ninho), poemas minimalistas, inspirados em notícias e vários outros exercícios poéticos.
Porém, no conteúdo, nas entrelinhas dos versos, alguns poemas rebeldes insistem em fugir ao grande tema. Medo, displicência, conveniência, covardia? É impossível dizer ao certo, talvez seja um pouco de tudo. Ou talvez a expectativa do belo título possa ter induzido meus olhos para outras sendas.
Múltiplas feras
A fera que Fabrício Marques atiça pode ser o vazio que persegue o homem, e reconhecemos a princípio como eixo do livro o poema Sem fôlego, extremamente lírico e expressivo. Mas não é em todos os poemas que fica evidente essa atitude, de modo que o leitor se questiona acerca dos motivos da falta de compromisso com esse eixo original. Salto alto e O helicóptero evidenciam essa fuga, uma espécie de passeio para longe do fio-condutor que consta do título.
Mas longe da sombra dos galhos misteriosos da “fera incompletude”, encontramos também belos achados: Outro damasco e toda a seção “As imposturas”, especialmente Como eles morrem, onde Fabrício exibe, em curtos e simples versos, a vida e morte de grandes poetas — mostrando que também eles vivem e morrem distantes da grandiosidade de seus títulos e frustram, assim, as expectativas de tantos dos seus contemporâneos e leitores.
Aparece, aos poucos, em releituras e de forma extremamente sutil, uma outra interpretação para a incompletude de que Fabrício nos fala. Afinal, Rilke e Emily Dickinson poderiam ter tido um fim mais grandiloqüente, mais compatível com o nome que induz à biografia:
Rilke um dia foi colher rosas
Para uma jovem egípcia
E feriu-se na mão
Por acidente
Com espinhos
O ferimento agravou a leucemia que sofria há tempos
(…)
Emily Dickinson insistia na solidão
Raramente saía de casa,
E viveu 25 anos como ermitã
Dela só existe uma única fotografia, feita aos 17 anos,
num vestido preto
Não conversava com estranhos
Em um lampejo, Fabrício não está mais falando só do vazio, da finitude da vida. Na verdade, a mediocridade é também uma fera devoradora e faminta que consome sonhos, jovialidade, esperança, a dimensão sempre enorme dos projetos que não conseguimos concluir, a beleza dos ideais que não conseguimos abraçar.
Há ainda outros pontos fora do eixo central, como Homem homenagem e Mini litania de política editorial, poemas que assumem contornos mais políticos, mas que em sua gênese revelam os tantos modos pelos quais a fera mediocridade pode exibir seus dentes:
Me suplica que eu te publico
Me resenha que eu te critico
Me ensaia que eu te edito
Me critica que eu te suplico
Me edita que eu te cito
Me analisa que eu te critico
Me cita que eu te publico
Lendo dessa forma, Fabrício Marques também revela que a mediocridade é uma certa forma de incompletude: uma falha da vida que poderia ter sido máxima, superlativa, mas desliza em certos momentos para o pequeno e o mesquinho, a despeito dos nossos vãos esforços. O autor aponta algumas saídas para as vidas que foram irremediavelmente perdidas para a fera mediocridade:
Ainda respiro
No olhar da filha
Contra a imperfeição dos deuses e das palavras.
(…)
Estendo na areia meus erros, minhas fraquezas.
E nenhuma força os ergue.
E, mais além:
Agora nós dormimos
e em nossos sonhos eles correm
desconhecendo fronteiras
Sem garras
De Hölderlin, lembramos que “o homem, quando sonha, é um deus, e quando reflete, é um mendigo”. Em sua época talvez existissem muitos sonhos na juventude, ainda que esta, amadurecida — ou acomodada —, perdesse os ideais e as esperanças. Fabrício Marques, em seu mergulho na incompletude que nos ronda, lembra que os jovens de hoje sequer têm a chance de se sentirem mesquinhos e covardes, ou até mesmo incompletos — a razão para uma apatia ímpar. Afinal, não há mais uma bandeira para se carregar, não há mais um ideal superlativo a atingir (ou até existem, mas são ideais superlativos que gravitam em torno do próprio umbigo): “Transgredi/ porque mandaram” ou “Dar o que pensar/ E na falta deste/ Pensar no que dá”.
Interpretada por essa óptica, a fera de Fabrício se apequena. Pelo menos para mim. A mediocridade vista como o descompasso com o que é exageradamente esperado de cada um de nós — ou o que exageradamente esperamos de nós mesmos, tal como beleza, riqueza, saúde, inteligência, perfeição do corpo, nossos melhores ângulos, exatamente aquilo que mostramos no Facebook —, é uma fera que ainda não conseguiu consumir meu ócio, meu fairplay, minhas noites, minha tranqüilidade e mansidão. A outra fera incompletude — a primeira, a que tira o fôlego —, esta sim, ainda me assombra.