As miragens da prosa habitada de imagens

A mera enunciação dos termos literatura visual já faz surgir diante de nossos olhos os poemas mais bem realizados do movimento de poesia concreta, liderado por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari
01/05/2001

Sinopse:
1ª parte: a poesia concreta, O ateneu, La ciudad sin nombre, os quadrinhos
2ª parte: breve história da literatura visual, Valêncio Xavier

1ª parte

A mera enunciação dos termos literatura visual já faz surgir diante de nossos olhos os poemas mais bem realizados do movimento de poesia concreta, liderado por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, nas décadas de 50 e 60. Justamente os poemas que têm como razão de ser a ascendência direta do clássico Um lance de dados, de Stephen Mallarmé, em que o branco da página e as diferentes famílias de caracteres tipográficos cumprem papel preponderante, dos Caligramas de Guillaume Apollinaire, que representam figurativamente o tema dos poemas apresentados, que podem vir em forma de chuva, de relógio, de coroa, de gravata, e assim por diante, d’Os cantos, de Ezra Pound, épico da era moderna composto a partir do princípio estrutural do ideograma chinês, e do Finnegans wake, de James Joyce, romance em que palavras se superpõem, e som, imagem e sentido se unem para reforçar a idéia de que no microcosmo habitam reflexos do macrocosmo, e vice-versa. Literatura visual, por conseguinte, seriam os poemas Beba coca-cola e Terra, de Décio Pignatari, Ovo novelo e os da série Poetamenos, de Augusto de Campos, Se nasce morre e O âmago do omega, de Haroldo de Campos, realizações plásticas que privilegiam o espaço em detrimento do tempo, em que predomina não a leitura passo-a-passo característica da literatura, mas a apreensão instantânea da pintura.

Até aqui, tudo bem. Temos uma boa amostragem do que de mais imediato costuma vir à mente quando o assunto é literatura visual. Mas não é esse o caminho que pretendo seguir no momento. O tema deste breve ensaio é infinitamente mais prosaico. Ele diz respeito a um tipo de literatura que está, de fato, vinculado a certos elementos visuais, mas não da maneira como foi postulado pelo Concretismo. Um bom exemplo do que estou falando são os textos em prosa que também mereceram, por parte de seus autores, alguma elaboração gráfica, como os livros Alice no país das maravilhas e Através do espelho, ilustrados por Lewis Carroll, e, no território brasileiro, O ateneu, ilustrado por Raul Pompéia. São modelos clássicos de dupla-autoria. Mas o vínculo entre texto e imagem, como estamos acostumados a ver nesses casos, é muito frágil. Subordinadas à história que está sendo contada, raramente as ilustrações têm algo a acrescentar, não passando de simples reforço visual ao que já foi dito pelas palavras. Tanto isso é verdade que várias edições d’O ateneu tiveram os desenhos expurgados, para horror da crítica especializada, que viu nisso mais um ato arbitrário do mercado editorial. Uma vez que o autor planejou para a sua obra mais esse patamar de leitura — texto versus imagem — não cabe ao editor a decisão de suprimi-lo. No caso dos livros de Lewis Carroll e Raul Pompéia, eliminar ou substituir as ilustrações originais não é difícil, pois, como já foi dito, trata-se de extirpar um elemento estanque, que pouco acrescenta ao discurso verbal. Mas há casos tão bem realizados, em que imagem e texto estão de tal maneira entrelaçados, que suprimir a primeira é destruir o segundo e, por conseguinte, toda a obra. Um bom exemplo é a belíssima novela La ciudad sin nombre, do artista plástico uruguaio Joaquím Torres-García. A narrativa, publicada em 1941, não foi composta tipograficamente, mas caligrafada pelo próprio autor, que também fez surgir dentro dos parágrafos vários desenhos a traço, singelos como os de uma criança. Assim as igrejas, as carroças, as pontes, as pessoas e os edifícios que integram essa cidade sem nome nos são apresentados de maneira nova e impactante, por meio de figuras tão imbricadas no texto que editor algum conseguiria suprimi-las.

O que tais obras indicam, diferente do que fez o Concretismo ao elevar e restringir os objetivos do poema — mesmo tendo muitas vezes se respaldado em experiências pictográficas tão livres quanto às de Torres-García: no Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade e nos poemas óticos de Bob Brown, por exemplo —, é a possibilidade de um novo gênero de prosa para o qual ainda não foi encontrado um nome, cuja gramática conteria as regras do verbal e do pictórico.

Tecnicamente já existem, desde o final do século 19, uma vasta produção industrial e uma divulgação planetária de narrativas em que palavra e imagem juntam-se para entreter o leitor: os quadrinhos. No entanto, se no início as aventuras de Flash Gordon, Mandrake e Príncipe Valente chegavam a sugerir certo equilíbrio entre texto e ilustração — apesar de que muitas vezes as legendas só faziam repetir, com palavras, o que a ilustração já estava mostrando! —, com o passar dos anos o equilíbrio foi quebrado em favor da imagem. O norte-americano Will Eisner e o francês Moebius, para ficar só nestes dois mestres do gênero, têm entre as histórias que criaram algumas em que a palavra foi abolida, comparecendo, no máximo, na forma de onomatopéias. Mais radicais, quadrinhistas como o francês Pat Mallet, o argentino Mordillo e o brasileiro Caulos elaboraram quase todas as suas narrativas sem uma palavra sequer, deixando claro que ao poder de síntese de um quadrinho isolado sempre vem somar-se o de análise, principal função do discurso verbal, quando mais quadrinhos se unem ao primeiro, formando uma cadeia coesa.

De qualquer maneira, o que está em jogo não é determinar se, para a glória maior da arte, o ideal seria manter ou não os pratos da balança na mesma altura. O que realmente importa é valorizar esse gênero mestiço, metade prosa metade desenho, cujo maior mérito é o de tirar partido da oposição quase física que há entre palavra e imagem, como se estas possuíssem, à maneira de prótons e elétrons, polaridades contrárias.

Nos quadrinhos e nas fotonovelas convencionais, gêneros tipicamente de massa, obviamente tal oposição jamais é exposta aos olhos do leitor sem que esteja aparada, livre de todas as arestas. O embate entre o verbal e o pictórico, nesses casos, não produz a faísca capaz de quebrar o automatismo da leitura porque vigora, graças ao esforço do artista, certa diplomacia entre as duas artes capaz de mantê-las no seu território de origem, quietas e bem-comportadas. O cartunista romeno naturalizado norte-americano, Saul Steimberg, mais conhecido pelas capas que desenhou para a revista The New Yorker, criou pequenas obras-primas que satirizam o convencionalismo dos quadrinhistas e dos publicitários: são cartuns em que a política de boa vizinhança tanto da palavra quanto da imagem — ambas sempre evitando jogar lixo no quintal uma da outra — vê-se de súbito despida de toda a hipocrisia. O resultado é a mais fina e ferina crítica aos atavismos humanos, quando, por exemplo, ditados populares e frases-feitas ganham a consistência dos objetos sólidos e esmagam a cabeça das pessoas, ou põem-se no seu caminho, como paredes altíssimas, impedindo-lhes a passagem, ou quando balões assassinos furam o corpo das personagens, e assim por diante.

Mas as histórias em quadrinhos, apesar do alto nível que artistas como os já citados lhes conferiram, ainda não adquiriram o estatuto de grande arte. Por mais boa vontade que críticos do porte de Umberto Eco tenham com as tiras desenhadas por Charles M. Schulz, ainda não é possível atribuir a elas o mesmo valor que damos aos romances de Kafka ou às pinturas de Picasso. Charlie Brown e Gregor Samsa vivem em universos repertoriais distintos — um leitor de Kafka, nas horas mais amenas pode se deliciar com Snoopy e sua turma, com as novelas picantes e surrealistas de Milo Manara ou Guido Crepax, mas o inverso raramente é verdadeiro. Quem talvez tenha chegado mais perto dos louros da qualidade artística, sem tirar completamente o pé dos quadrinhos, foi o francês Jean-Claude Claeys, que teve dois álbuns publicados no Brasil pela editora L&PM: A canção da magnum e Cabaret Paris-Fripon. Trata-se de duas fotonovelas policiais em preto e branco, à maneira dos filmes noir, compostas de fotomontagens, em que estrelas de cinema como Farrah Fawcett, Marlon Brando e Jean-Paul Belmondo interpretam os papéis principais — sem jamais terem sido solicitadas para isso. O conjunto é divertido, pois transpira paródia por todos os poros. Mas ainda não transcende — e, de fato, nem se pretende a isso — sua condição de mero entretenimento.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho