As miragens da prosa habitada de imagens

Toda pesquisa, seja em ciência seja em arte, por mais que faça uso de instrumentos previamente testados desenvolve-se apoiada numa plataforma traiçoeira, o acaso
Para Nelson de Oliveira, as narrativas de Valêncio Xavier se esquivam de uma catalogação mais apressada
01/06/2001

Sinopse:
1ª parte: a poesia concreta, O ateneu, La ciudad sin nombre, os quadrinhos
2ª parte: breve história da literatura visual, Valêncio Xavier

2ª parte

Toda pesquisa, seja em ciência seja em arte, por mais que faça uso de instrumentos previamente testados desenvolve-se apoiada numa plataforma traiçoeira, o acaso. A busca da forma ideal do que poderíamos chamar de literatura visual não foge à essa regra. É feita de tropeções e de experiências malogradas. É conduzida muitas vezes por profissionais que, firmemente atrelados às leis do mercado — os quadrinhistas, os autores de livros infanto-juvenis e de fotonovelas —, não estão interessados em aperfeiçoar arte alguma, mas, quando muito, apenas em realizar bem um gênero já estabelecido. A questão texto versus imagem não significa, para eles, um desafio estético a ser levado às últimas conseqüências. Como disse na primeira parte deste artigo, a respeito deste confronto: “Nos quadrinhos e nas fotonovelas convencionais, gêneros tipicamente de massa, obviamente tal oposição jamais é exposta aos olhos do leitor sem que esteja aparada, livre de todas as arestas. O embate entre o verbal e o pictórico, nesses casos, não produz a faísca capaz de quebrar o automatismo da leitura porque vigora, graças ao esforço do artista, certa diplomacia entre as duas artes capaz de mantê-las no seu território de origem, quietas e bem-comportadas”.

É neste ponto que entra em cena Valêncio Xavier. Paulista radicado em Curitiba, Valêncio tem o sangue contaminado pelo cinema e pela tevê, veículos de massa com os quais trabalha regularmente, ora como consultor, ora como roteirista, ora como diretor. Suas narrativas, feitas de fotos antigas tiradas de velhas revistas, fragmentos de jornais do início do século, anúncios publicitários, papel de balas, rótulos e embalagens de produtos de limpeza, fotogramas de filmes B, cartuns, gravuras, logotipos e tudo o mais que possa ser agregado à palavra escrita para lhe aumentar a carga de expressividade, são obras híbridas que se esquivam a uma catalogação mais apressada. Peguemos por exemplo O mez da grippe, sua novela mais conhecida. Trata-se aqui de literatura ou, dada as peculiaridades plásticas envolvidas, de fotonovela ou história em quadrinhos? Obviamente, se não quisermos empobrecer o objeto de análise, nem de uma coisa nem de outra.

Tanto os quadrinhos quanto as colagens de Valêncio Xavier têm raízes comuns, e estas crescem ao largo das raízes do que se convencionou chamar de literatura: são as pinturas rupestres que mostram cenas de caça e da vida nas cavernas; os baixos-relevos da Babilônia; as seqüências inteiras de hieróglifos egípcios, acompanhadas de caracteres hieráticos, que narram a rotina dos faraós e de seus súditos, de quarenta séculos atrás; as gravuras chinesas e também sua escrita ideogrâmica; algumas iluminuras medievais e a tapeçaria de Bayeux, do século XI; as seqüências de gravuras narrando o drama da Paixão de Cristo, de Albrecht Dürer; a Captura do bandido Maragato pelo monge Pedro de Zaldivia, relato sem palavras composto de seis quadros pintados a óleo por Francisco de Goya; a série de gravuras executadas por Gustave Doré para a Divina Comédia e o Dom Quixote, entre outros clássicos da literatura; as pinturas cômicas de William Hogarth, da primeira metade do século XVIII, e as gravuras satíricas inglesas que surgiram logo em seguida; as Histoires en estampes do suiço Rodolphe Töpffer, do início do século XIX; as imagens de Épinal, representações das batalhas de Napoleão e de alguns contos infantis, que deram forma narrativa à gravura, e assim por diante.

As balizas da poesia concreta são muito mais nobres do que as das novelas de Valêncio Xavier, que, distantes da preocupação verbivocovisual da poesia purista, são, antes, narrativas que se deixam nortear pelo mesmo submundo medíocre e pestilento já tão celebrado, na prosa tradicional, por outro curitibano ilustre, Dalton Trevisan. Valêncio não vai buscar material — pelo menos não diretamente — nos poetas herméticos nem nas demais vanguardas formalistas, representadas por artistas também de outras extrações, como Kasimir Malevich e Piet Mondrian, na pintura, Anton Webern e Karlheinz Stockhausen, na música. Sua fonte de alimentação são as “notícias populares” da imprensa marrom, carregadas de crimes e sexo, e a baixa cultura suburbana e impura, cujos protagonistas são os estupradores e os bispos das igrejas evangélicas, os seriados de tevê e os filmes pornôs, os quadrinhos, os catecismos e a literatura barata. Esse prosaísmo livre de manifestos ideológicos — o autor, nos quase setenta anos de vida, jamais propôs um libelo a favor de sua arte, como fizeram os arautos de todas as vanguardas do mundo — associado a procedimentos formais extremamente originais — estes, sim, inegavelmente vinculados ao dadaísmo, ao surrealismo, à teoria da montagem de Sergei Eisenstein e ao Cidadão Kane de Orson Welles — são o grande mérito de novelas como O mez da grippe e Maciste no inferno.

O mez da grippe, a obra mais festejada de Valêncio Xavier, nasceu de forma curiosa. Em 1981 o autor, também jornalista, preparava uma reportagem sobre a epidemia de gripe espanhola que, entre 1917 e 1918, matou mais de vinte milhões de pessoas no mundo, inclusive em Curitiba. “Eu estava folheando os jornais da época da doença e vi que ali estava o fio condutor de minha história: um jornal oficial, que queria esconder a gripe, e outro, que relatava até seus próprios problemas com funcionários enfermos. Depois disso, o resto foi trabalho braçal. A obra já estava pronta na minha cabeça”. As três partes da novela — 1918, novembro: Alguma coisa; 1918, dezembro: O mez da grippe e 1919, janeiro: A última letra do alfabeto — são compostas de fotos, anúncios publicitários e textos recortados dos dois jornais em questão, de versos eróticos escritos pelo próprio Valêncio e de depoimentos de dona Lúcia, fusão das várias mulheres que sobreviveram à epidemia ouvidas pelo autor. O avanço da Maria Ignacia, apelido dado pelos jornais da época à gripe espanhola, o abalo sofrido pela população de Curitiba e outros detalhes do cotidiano do começo do século, no Brasil, são entregues ao leitor de forma fragmentada, para que este monte sua própria narrativa. Trata-se de polifonia pura, pois cada imagem possui voz própria, distinta das demais, como num jornal, em que o leitor lê uma manchete, pula para a página de esportes, depois para a de artes e espetáculos, se detém na foto de uma atriz e, em seguida, volta para ler sobre o crime do dia.

Por conta da simplicidade artesanal envolvida no seu trabalho, Valêncio Xavier às vezes se espanta com, a seu ver, a exagerada perplexidade que suas narrativas costumam causar principalmente entre a crítica mais sofisticada: “N’O mez da grippe tem uma cena de um alemão que cria um incidente no Teatro Hauer. Como Balzac escreveria essa cena? Descreveria o personagem, detalharia o teatro e então contaria o que aconteceu lá dentro. Eu fiz a mesma coisa, só que coloquei um desenho tirado de um anúncio da época, de um sujeito que me pareceu capaz de realizar aquela ação, daí coloquei uma foto do Teatro Hauer e então reproduzi uma notícia de jornal que descrevia o incidente. Fiz a mesma coisa que Balzac faria, só que, em vez de palavras, usei imagens e imagens de palavras”. Mas leitores do porte de Boris Schnaiderman e Flora Süssekind julgam que o que está em jogo não é algo tão trivial assim. Décio Pignatari também é categórico: “Esta é a contribuição de Valêncio Xavier, particularmente no modelar O mez da grippe: não fez romance ilustrado, nem ilustração romanceada. Abriu um novo caminho para a escritura. Escritura gráfica. É o nosso primeiro escritor romancista gráfico. Depois do grande e frustrado Raul Pompéia de O ateneu”.

Os meandros escatológicos dos diversos nichos da sociedade brasileira, e a colagem, essa apropriação indébita de imagens e palavras alheias, como procedimento narrativo mais apropriado para o mundo multifacetado em que vivemos, continuam na base das três novas novelas de Valêncio Xavier — Minha mãe morrendo, O menino mentido e O menino mentido: topologia da cidade por ele habitada —, recém-lançadas em um único volume, pela Companhia das Letras. Mestre da narrativa híbrida cujo nome, apesar de sua ancestralidade, ainda não foi encontrado, o que espanta é que o autor radicado em Curitiba continue sendo a escola de um só artista. Nem o mercado editorial nem os jovens autores se deram conta, ainda, que a arte surge muito mais fortalecida quando mais vozes se juntam para enriquecer um gênero ainda não de todo padronizado. A revitalização de formas antigas, como o soneto e o romance psicológico, que vemos hoje, precisa ser contrabalançada com a exploração de formas ainda não sedimentadas. Faltam continuadores para a arte de miragens que, por falta de nome e de artistas, costuma ser designada como a Arte de Valêncio Xavier.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho