As mil e uma metáforas de Carrascoza

Contos de "Duas tardes" infiltram-se pelas pequenas coisas do cotidiano
Carrascoza: apego a observações cotidianas
01/09/2002

Sem dúvida João Anzanello Carrascoza é um escritor sensível. Ganhador do prêmio Guimarães Rosa — patrocinado pela Radio France Internationale — em 1993, ele lançou recentemente Duas tardes. No novo livro, traz contos em que se mostra um observador das pequenas coisas que compõem a vida. É claro, isso é mais um aviso que uma constatação, pois, assim, previno os leitores que já estão cansados de escritores que escrevem sobre as pequenas coisas da vida. E enfastiados principalmente de metáforas. Tão poéticas e numerosas que poderiam facilmente encher esta página. Sem dúvida que ele é sensível e sua literatura tem a qualidade dos bons observadores da vida, daqueles que ruminam significados e as mais profundas emoções nas menores coisas, mas alguns olhos poderão achar, justamente por isso, seu estilo um tanto pastoso.

O primeiro conto é O menino e o pião. O primeiro parágrafo de um livro, possivelmente nos diz muita coisa. Afinal, o que seria de O estrangeiro, de Camus, se o autor não entrasse logo a falar sobre a mãe que tinha morrido hoje. Ou ontem. Considerando isso, Carrascozza começa assim: “O menino sentou-se no mais alto degrau da escada, encostou-se à porta da casa, o cordel e o pião nas mãos, e observou o movimento da rua que àquela hora se intensificava. A noite engolia a tarde com um abraço, as pessoas saíam do trabalho, de volta umas a suas famílias e seus silêncios, outras, tantas, à solidão de seus gritos”. Claro que Carrascoza é dos que ficam burilando as frases em sua cabeça antes de torná-las definitivas. Possivelmente, a escolha da palavra “cordel” no lugar de barbante tenha sido proposital, bem como o uso do monstro gramatical “àquela”, ou a forma como ele destaca a palavra “tantas” colocando-a entre vírgulas. Quando digo que alguns leitores não gostarão do estilo de Carrascozza, refiro-me a passagens como a em que ele diz que a noite engolia a tarde ou quando joga com contrastes e opostos, falando, por exemplo, do silêncio dos que estão acompanhados e dos gritos dos que estão sós.

Confesso que me emocionei em dado momento com esse primeiro conto em que o autor fala de relações familiares, mais especificamente a relação entre pais e filhos. Esse tipo de tema costuma apelar para as lembranças mais comuns entre nós, seres humanos, que não nos reproduzimos por partenogênese e, portanto, temos pai e mãe, na maior parte das vezes.

O tema da infância e dos pais e filhos estão quase sempre presentes em seus contos. Em O menino e o pião encontramos: “… como nas vezes em que pai levava o menino ao estádio de futebol e o segurava com força, receando perdê-lo na multidão, sem se dar conta de que a cada instante o perdia um pouco mais, e o destino de um, apesar de emaranhado nas linhas da mão do outro, ia se desgarrando, suavemente, e para sempre”. Claro que era sem perceber. As pessoas comuns não costumam ser tão dramáticas. Só as mais sensíveis. Para o pai e o menino, provavelmente, foi uma tarde em que eles viram um jogão e em que eles se divertiram muito. E, mais adiante: “Se o pai tivesse carro e apontasse na rua lá em cima, o menino o reconheceria, mesmo se existissem outros carros da mesma cor e do mesmo modelo transitando por ali — o raio sempre sabe de que sol partiu…”. Em outro conto, No morro, mais adiante, temos: “A mãe o examinou como quem descasca uma cebola, tirando as películas que escondem o seu miolo sadio e, se o filho se enternecia vendo-a pelas costas (…), a mãe poderia detectar o que ainda era semente nele, e reconhecê-lo pelo avesso, folha que se soltara de seu corpo, como a pena caída ainda é do pássaro”.

Em Travessia, mais um conto em que aparecem as figuras dos pais e do filho, temos, entre tantas comparações e metáforas, esta: “À sua direita estava o menino; à frente, a mulher, e também eles não lhe pertenciam. Eram porções suas como os raios o são do sol, mas a ele não regressam, escolhem seus próprios caminhos e os escuros que desejam iluminar”. Na verdade, uma variação sobre o mesmo tema. No mesmo conto, ainda temos: “Como a iguaria que não lhe sabe bem e vai com outra que lhe apetece na mesma garfada, a mulher digeria a um só tempo o gesto inesperado do marido e o temor de que lhes comprometesse a travessia”. Note o leitor o sentido em que ele usa o verbo saber na oração e pese se é este o estilo que melhor lhe “apetece”. Os pais e o filho aparecem novamente em Cálice, uma alegoria de seis páginas sobre a Sagrada Família.

Em Visitas, um dos contos mais interessantes do livro, em que o autor desvela os tais diálogos silenciosos daqueles que têm companhia, numa visita de um casal a casa de outro casal temos, no entanto, algo como: “… na outra mão segurava a filha, pétala que facilmente se transformava em espinho…”

Esta metáfora, do primeiro conto, é imperdível: “Sente-se inquieto, é a segunda dentição dos sentimentos que lhe vem, e esses serão rascantes, contraditórios, mordazes, a gengiva já sangra com a perda daqueles que lhe pareciam eternos, aos poucos cariaram, enegreceram, apodreceram, e ele não teve quem o ajudasse a arrancá-los delicadamente a barbante — a vida com seu boticão se encarregou de fazê-lo”. Destaco de forma neutra o trecho para que aqueles que se enternecem com esta qualidade de escrita comprem o livro e para aqueles que não se divertem com isso sejam prevenidos e o evitem. Afinal, certamente há os que gostam do estilo e os que, como eu, não. Acredito que deva cuidar no uso de suas figuras de linguagem para que de característica não passem a ser uma mania.

Certas coisas, no entanto, não se pode negar. Carrascoza tem um estilo e o sabe usar — agrade ou não —, assim como os temas, e a maneira de desenvolvê-los, são tocantes. Mas só cabe a cada leitor julgá-lo independentemente.

Duas Tardes
João Anzanello Carrascoza
Boitempo Editorial
109 págs.
Alessandro Martins

É jornalista e blogueiro. Edita vários blogs de cultura. Um deles é o Livro e Afins: http://livroseafins.com.

Rascunho