Fomos educados e preparados na leitura de uma intensa degradação humana no futuro. O fenômeno, com fortes doses de imaginação e tecnologia, está nos livros de Júlio Verne e Ray Bradbury e, com acentuado gosto político, nos textos de Aldous Huxley e George Orwell. No caso da literatura brasileira, o porvir trágico está acontecendo hoje. E a degradação social vem pontilhada com a devastação moral de uma sociedade frente aos apelos do sexo e da violência. Pelo menos é para este horizonte que aponta parte de nossos jovens autores.
Neste ambiente, o da diluição do homem, também se insere a reunião de contos Plano de fuga, de Abilio Godoy. Todas as decadências pessoais são descritas numa prosa alucinada, com frases que aparentam desconexão, mas que, ao final, se fecham em relatos doloridos. Entre o surrealismo de algumas cenas e as neuroses criadas em ambientes sombrios caminham os personagens inventados com o propósito de fazer uma leitura da metáfora do abismo. Todos se encontram num limite onde a escolha do próximo passo vai definir a chegada ao inferno ou ao paraíso.
Individualismo
O problema desta literatura que busca enxergar o futuro, no entanto, é exatamente seu caráter profético. E nos casos citados, tudo aconteceria na virada do milênio, mas o século 21 chegou sem a parafernália tecnológica, nem os excessos políticos. Tudo bem que uma coisa ou outra aconteceu, como uma nova divisão mundial entre integrados e bárbaros, mas estamos longe das máquinas extraordinárias de Verne, do universo paralelo de Bradbury, da desumanidade plena de Huxley e o Big Brother de Orwell virou reality show.
No caso específico de Ponto de fuga, a radicalização política e técnica inexiste. Restam então os conceitos do individualismo. Já no conto que abre o volume, Ocaso, há este sentimento de universalização do indivíduo como um ser sozinho, que parece bastar-se a si mesmo. O protagonista-narrador caminha onipresente por vários países sempre sem propósito e com uma multidão a querer lhe engolir. E para Abílio este parece o retrato mais fiel do homem moderno, um solitário cosmopolita.
Os outros textos vão seguindo numa torrente de fatos que se completam e se justificam. No texto escrito para a orelha, o escritor Joca Reiners Terron lembra Rubem Braga e a expressão “romance desmontável”, que criou para definir Vidas secas, de Graciliano Ramos. Em alguns momentos Plano de fuga leva mesmo o leitor a pensar em um romance formado por narrativas isoladas. A impressão, no entanto, não sobrevive à medida que segue a leitura. Há mais elementos de distanciamentos que de união entre os contos publicados no livro.
As conexões se fazem no estágio permanente de tensão dos personagens e em sua condição de fugitivos em potencial, embora a mobilidade seja bem discreta, quando não inexistente. Todos sentem o desejo da movimentação, da saída de sua condição degradante, mas as amarras que os prendem são suficientemente fortes para serem vencidas pelo mero desejo. “Recuso-me a apostar menos que a vida”, sentencia um dos narradores, e este poderia ser o bordão de todos os outros, mesmo quando recuam diante da situação extrema.
Estamos falando assim de uma gente perdida para sempre. São numerólogas, artistas de circo mambembe, travestis, freqüentadoras de academias, enfim, toda uma gente que envelhece, mas tenta a todo custo manter os últimos raios da juventude e da vitalidade. E como os contos são sempre narrados na primeira pessoa, todas estes narradores sofrem de suspeição, não se pode confiar plenamente em nenhum deles.
Encruzilhadas
Outra característica marcante é que praticamente todos os contos são narrados por mulheres, ou, melhor dizendo, são narrados no feminino, e quase nenhuma dessas narradoras é nomeada. Isso adensa no leitor a certeza da individualidade, de não querer o autor fulanizar nenhuma das condições. Todos sofrem suas mazelas e elas poderiam atingir qualquer um, indiscriminadamente.
O mundo em si é que se marca por indefinições e confusões. Nada é claro e definitivo, nem os relacionamentos, nem os espaços onde transitam os personagens. A síntese da nebulosidade está bem clara no conto COMun, onde se disputa um estranho campeonato de sonhos. Os gênios criadores das máquinas que revelam os sonhos são todos perdedores, pois o sistema os envolve e arranca deles todos os privilégios e méritos. E novamente todos ficam frente ao beco sem saída.
Também o autor se vê diante da encruzilhada. Num tempo em que erotismo e violência fazem um irrenunciável binômio para os novos autores, Abílio foge dele. Não que faltem cenas eróticas e violentas no livro, mas todas são mais insinuadas que propriamente ditas. E outra vez, estamos no ponto onde mais vale o imaginado do que o narrado. Aliás, esta é a cumplicidade constante que o escritor cobra de seus leitores.
No mais é mesmo apostar na independência dos textos e das ilustrações anárquicas que pouco definem, que pouco mostram. Tudo se fecha mesmo no território de todas as possibilidades, onde cada um terá direito a uma leitura. Daí vem a força da crueldade que se abriga nas palavras, nas frases, que também unifica os narradores. Aliás, estes optam mesmo por uma poética inovadora, mesmo quando ela macula o sentido convencional. Como nos conta a narradora do conto Colheita:
A água fria do chuveiro arrasta para o ralo o suor dos pesadelos e a parte de mim mesma que morreu durante a noite. Traída por nuvens que choveram a fome. (…) As nuvens verteram pássaros e os pássaros destruíram tudo
Onde, enfim, quer chegar Abílio Godoy com este seu Plano de fuga? Ao reviver o ambiente escuro e pesado dos clássicos da literatura futurista parece alertar o leitor para como caminha inexoravelmente a humanidade, ou pelo menos nosso quintal metropolitano. Tudo pode desaguar no sarcasmo cru e cruel do individualismo pleno, mas tudo pode não passar de uma visão alegórica da sociedade atual. E nesta encruzilhada é melhor ler Godoy pelo inquietante prazer de uma boa leitura.