Luis Fernando Verissimo é a melhor parte de boa parte dos jornais do país. Durante minha experiência como jornalista, no Diário Catarinense, se tinha uma página que todos queriam editar e revisar, ou só ler, era a página do Verissimo. Quando ele esteve em Florianópolis, em 2012, com o grupo Jazz 6, um colega lhe telefonou para fazer uma entrevista e o gaúcho pediu que as perguntas fossem enviadas por e-mail. Como o prazo para enviar o jornal para a gráfica se aproximava, o colega insistiu em fazer por telefone, mas Verissimo, com toda sua timidez, respondeu “prefiro fazer por e-mail, respondo logo, não se preocupe, coisas de escritor”. E, de fato, respondeu bem rapidinho. É engraçado pensar que alguém tão tímido escreveu os textos de Os últimos quartetos de Beethoven e outros contos.
Enquanto a novela das oito ainda age como se um beijo gay fosse tabu e faz escândalo em cima do assunto, Verissimo está refletindo sobre a pedofilia, fazendo diversas releituras de Lolita, de Vladimir Nabokov, livro que já foi considerado um dos principais do século 20 com a história do professor universitário obcecado por uma menina de 12 anos. Numa das releituras, chamada Lo, Verissimo apelida Dolores (nome de Lolita no livro) de Dolores Fuertes de Barriga e a transforma na pedófila da vez. Em outra, provoca: “O Nabokov tem uma história parecida, mas sobre xadrez. Esta não é plágio, no entanto. Digamos que é homenagem”.
Apimentadas, sensuais, tristes e sempre cômicas, Verissimo parece escrever por diversão (a dele e a do leitor), mas também para chutar para escanteio uma ou outra pulga detrás de sua orelha, que remete a questões abstratas como a loucura, a velhice, os mistérios da nossa existência e a contradição dos sentimentos e atitudes humanos. Outras vezes, ele reflete sobre assuntos mais palpáveis, como a ditadura brasileira, o vício da leitura e o medo de voar.
É um jogo de faz de conta bem aberto para o leitor: faz de conta que a ditadura acabou e quem antes era perseguido e torturado agora enriqueceu e entrou para o círculo de conhecidos dos perseguidores. Faz de conta que você tem acesso aos pensamentos de uma pessoa à beira da morte, tendo um ataque do coração ou um AVC, e você pode ver cada pensamento bizarro que ocorre a ela, cada vez em que ela tenta se lembrar de onde deixou os remédios e só o que lhe vem à cabeça são os nomes das ruas de Copacabana, o Gordo e o Magro, as capitanias hereditárias e os jogadores do Flamengo na década de 40. Faz de conta que a morte bate à sua porta, mas ela simpatiza com sua família e acaba se revelando uma incrível dona de casa, quase uma Mary Poppins. Personagens como esses e como a Livia, a primeira da turma a fumar maconha e fazer tatuagem, a garota que tinha um bando de seguidores na escola, a quem ela ensinava a dançar o twist e dizia quais livros ler, ficam marcados na memória. Com suas imperfeições, gostos e realidades tão claras, eles são o que Verissimo faz de melhor. É sempre surpreendente ver uma reflexão sobre Beethoven e o princípio do modernismo na música em um texto sobre a galerinha do colégio, aquela mais trivial, que todo mundo teve. E é surpreendente como Verissimo faz essas combinações funcionarem.
A conclusão é que Verissimo está a fim de experimentar. De tentar uma escrita quase abstrata para retratar o pensamento de um homem à beira da morte, de incorporar clichês como “assim o Brasil não vai para a frente” e até o jovem “beijo na bunda” via SMS. Aonde é que ele vai parar com isso? Não vai parar. Como o próprio Verissimo escreve em Memórias, o cérebro é como um tubarão, se parar, vai para o fundo.