As linhas retas de uma mesa quadrada

"Tudo pode ser roubado", de Giovana Madalosso, diverte, mas não ultrapassa a morna coesão
Giovana Madalosso, autora de “Tudo pode ser roubado”
30/06/2018

As palavras que abrem Tudo pode ser roubado são de G. H., narradora de Clarice Lispector: “Somos livres, e este é o inferno”. A epígrafe, tão breve quanto potente, desloca o entendimento comum de liberdade e coloca o devido peso no “apenas escolher viver” da narradora que abre o seu relato, sobre a desintegração subjetiva que sofreu, tentando entender, e o fecha colocando o impossível da compreensão. O que fica como questão é se o romance de Giovana Madalosso sustenta este inferno que é ser livre.

Uma garçonete catarinense de um badalado restaurante paulistano pratica roubos de peças de luxos sem que as vítimas, seus parceiros sexuais, se deem conta da subtração dos objetos. Esta é a narradora que conduz o enredo em primeira pessoa. Os cenários — o restaurante da Avenida Paulista, o brechó de Pinheiros, a faculdade de elite de Higienópolis, as ruas do Centro — são o ponto alto do romance. Tanto compõe algo que parece ditar o ritmo da narrativa, entre o excesso e a ausência, como também aparecem ilustrados por imagens que desbravam o centro de São Paulo, como a dos “intestinos da cidade”, que ficam além “da Augusta penteada pelo dinheiro, para lá da Augusta monitorada pelas câmeras, para lá da Praça Roosevelt”, ou a do prédio da Avenida São João, “um paredão malcuidado com centenas de janelas, um mosaico de quadrados solitários”.

Os cenários e o tom sarcástico, no entanto, não disfarçam uma composição que parece mais se agarrar ao manual de roteiro de Syd Field do que à dispersão de G. H. A abertura do romance traça um retrato tão divertido quanto preciso, talvez excessivamente preciso, da atividade clandestina da protagonista. O capítulo posterior apresenta a ocupação formal e coloca em cena uma característica da narradora que será remetida ao longo do enredo de maneiras distintas, talvez igualmente próximas ao limite do raso; a apatia de quem, diferente de outras garçonetes, não tem ambições profissionais ou artísticas além do ofício atual. Em seguida, é apresentado o conflito que movimentará a narrativa: a proposta de um roubo que promete ser muito mais lucrativo do que os furtos anteriores. Após a aparição de mais uma personagem relevante, Tiana, a dona do brechó que costuma comprar os objetos surrupiados, e a especificação do bem valioso a ser roubado — a primeira edição de O guarani, de José de Alencar —, chegamos enfim ao que a personagem ambiciona: ter um apartamento.

É assim, com todas as cartas na mesa, que a leitura segue. De maneira agradável e fluída, sim, há um ritmo empolgante, mas que não tem estofo o suficiente para dissipar a impressão de que muitos dos elementos da história já foram vistos em algum outro lugar, possivelmente um filme americano. No encontro inicial da protagonista com o picareta que encomenda o roubo do livro, aparece a seguinte imagem: “Ele pegou um guardanapo, anotou um número de telefone e enfiou no bolso do meu avental”, quando a narradora fala da forma que se veste, é esta a descrição: “Nunca tinha usado um lenço, estava sempre de jeans, botas e camiseta, meu único acessório era uma bolsa”. Algo nela — que se diz viciada em café e se define como alguém que não gosta de sair do controle — dificulta saber se o pastiche é efeito estético, retrato de uma geração ou apenas limite da narrativa.

Desvios éticos
Também entre precária linearidade e tiradas sagazes ficam os desvios éticos de personagens secundários. O rico colecionador, interessado no livro de Alencar, é um tipo que tem entre seus pertences únicos cocares indígenas pendurados nas paredes, comprados com o patrimônio do pai banqueiro. Também nesta categoria, um pastor famoso na internet, cliente do restaurante, pede um vinho que “custa mais de uma prótese dentária ou um mês de aluguel ou uma passagem para o Ceará”, apalpa uma menina de doze anos e solta o tradicional “vagabunda” ao se deparar com o corpo parcialmente desnudo da protagonista na iminência do sexo. Ainda neste sentido, um homem se envolve com Tiana, que é transexual, e ao se deparar com um conhecido, levam juntos a moça para um beco escuro e a agridem. “Claro que ele é apaixonado por mim. Mas ele também me odeia por isso. Sabe o adesivo que ele pôs no nariz? Ele também costuma usar para melhorar a performance no esporte. Uma parte dele queria bater em mim. Bater muito”, narra a dona do brechó. Não se deve descartar certa ousadia, no entanto, é difícil não notar algo que fica no território do redutível, de um delineamento comum, insosso, desgastado. Em determinado momento, quando nota um possível novo alvo no restaurante, a narradora confessa algum desânimo em constatar que a vítima se senta, junto de seus acompanhantes, em uma mesa redonda. Isso porque neste tipo de mesa, “todas as certezas se escorrem pelas bordas”, enquanto nas quadradas, a configuração dos casais fica clara. As alfinetadas nestes que passam pela narrativa parecem presas nas arestas deste segundo tipo de mesa, assim como a composição do enredo. 

A rigidez das certezas
O excesso de pertences das vítimas dos roubos, que são subtraídas sem que ao menos percebam, se contrapõe à ausência de querer que a narradora atribuí a si, ausência também de nome próprio, que não aparece em nenhum ponto da narrativa. A marca mesmo que a narradora deixa é pela ausência, por meio da retirada de algo e a troca por um pequeno lugar vago. E parece ser em oposição semelhante que ela se vê quando consegue, por fim, se aproximar do objeto que lhe garantirá o financiamento da casa própria — o excesso do amor comovido e pueril de alguém tão cinza e vazio quanto o apartamento que comporta o valioso livro e a ausência de garantias do envolvimento com um pilantra profissional.

O excesso também entra como forma de alívio da angústia, como um rapaz que mantém o closet cheio com as roupas de uma esposa já morta ou uma jovem arquiteta com câncer que, após o anúncio da morte, decide inaugurar primeiras vezes de embriaguez e relações com mulheres. A narradora mesmo diz trocar a angústia da falta de respostas por certezas. A angústia, afeto avassalador e incontrolável, em Tudo pode ser roubado parece submetida à gestão individual. O que é colocado em xeque uma vez que a protagonista se vê conseguindo a única coisa que queria, a princípio, e ainda assim insatisfeita, ainda assim desejosa. A incompletude embaça a apatia tanto afirmada e a faz esbarrar fugazmente em alguma coisa ligeiramente mais densa: a debilidade patética, viva e tola, componente inerente ao querer. Há um movimento, portanto. Coeso e razoável. O que há, contudo, de coeso e razoável em desejar? Ainda mais considerando o ponto de partida, G. H., que em sua angústia — esta sim descontrolada e ingerível — coloca o desejo em termos de “aumentar infinitamente o pedido que nasce da carência”.

Tudo pode ser roubado
Giovana Madalosso
Todavia
189 págs.
Nasceu em Curitiba (PR), em 1975. É formada em Jornalismo pela UFPR e trabalhou por quinze anos com redação publicitária. O livro de contos A teta racional (Grua, 2016) foi finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional. Tudo pode ser roubado é o seu primeiro romance.
Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

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