As linhas de uma escritora “meio secreta”

Memórias e fatos corriqueiros estão no centro das narrativas de Vilma Arêas, cuja obra acaba de ser reunida em "Todos juntos"
Vilma Arêas, autora de “Todos juntos (1976-2023)” Foto: Julia Thompson
01/12/2023

Durante um café, o professor Samuel Titan Jr. surpreendeu Vilma Arêas com uma afirmação inesperada: “Sabe, Vilma, no fundo você é uma escritora meio secreta”. Premiada três vezes com o Jabuti de literatura, uma com o APCA e outra com o Alejandro José Cabassa, Samuel conta que Arêas ficou surpresa e desconfiada.

O professor precisou se explicar — disse que os livros estavam esgotados, publicados por editoras diversas e com lançamentos bastante espaçados. Conversa vai, conversa vem e ele se empolgou. Logo propôs: “Devíamos juntar todos os seus livros num volume só!” e então nasceu Todos juntos (1976-2023), coletânea de Vilma Arêas organizada por Samuel Titan Jr. e publicada pela Fósforo.

Vilma Arêas é fluminense, nascida em Campos de Goytacazes, em 1936. Ensaísta e professora aposentada de teoria literária no Instituto de Estudos da Linguagem na Unicamp, publicou ensaios e reflexões como Na tapera de Santa Cruz: uma leitura de Martins Pena (1987) e Clarice Lispector com a ponta dos dedos (2005), obra em que explorou complexidades para fugir dos lugares-comuns interpretativos estabelecidos nas leituras sobre Clarice.

Na ficção, o primeiro passo se deu com a publicação de Partidas, em 1976. A coletânea Todos juntos (1976-2023) reúne as sete obras lançadas desde então em volume único e inclui, além do já citado livro de estreia, Aos trancos e relâmpagos, A terceira perna, Trouxa frouxa, Vento sul, Um beijo por mês e o inédito Tigrão. Para a organização do volume, Samuel Titan Jr. optou pela disposição em cronologia reversa.

A escolha me parece acertada: tanto aos que estabelecem o primeiro contato com a autora ou àqueles que já são conhecedores da obra, a abertura pela seção inédita pavimenta o caminho pela contemporaneidade do escrito. Tigrão é o conto homônimo que inicia a coletânea. Ali, Vilma traz a história de dois presos políticos conhecidos por seus codinomes: Fabrício, um intelectual de esquerda, e Tigrão, um policial do Esquadrão da Morte. Ambos se tornam amigos durante o período de reclusão e, quando o primeiro é transferido na calada da noite para um interrogatório, Tigrão faz o possível para salvar sua vida: “Eles não são loucos de prejudicar um amigo meu”.

O conto deixa entrever alguns dos temas que perpassam a ficção de Vilma Arêas, como a força que a temporalidade incerta da memória exerce na estrutura narrativas. Em Tigrão, presente e passado se alternam. De um lado, os momentos em que a narradora reflete sobre Tigrão após o período de cárcere. Do outro, rememora o sumiço de Fabrício, as movimentações que a narradora e o ex-oficial do Esquadrão da Morte fizeram para a soltura do companheiro.

Vilma intercala as temporalidades imprecisas com reflexões pessoais e questões filosóficas, como a epígrafe de Jeanne Marie Gagnebin, que evidencia a importância das reminiscências na trama. Nas primeiras páginas, Arêas aponta a dificuldade no exercício dessa escrita:

De qualquer modo, quando penso no que aconteceu, parece que sou tomada por sobressaltos que dissolvem as diferenças dos tempos e o foco das lembranças. Estas passam a flutuar, sustentadas pela imaginação, único modo de conseguir alcançar a realidade possível de nossa história. Único jeito de tornar o invisível visível.

Outra dificuldade é que os instantes de dor, prazer, medo ou revolta não estão aqui no momento que escrevo. Não estão aqui. Por isso são irredutivelmente anacrônicos, pelo tempo irrecuperável entre mim e eles.

(…) Neste percurso, coisas são achadas e perdidas, tempo e espaço são desdobrados. Sempre que falamos deles, estamos separados, encaixados em momentos variados que podem se aproximar do devaneio e da ficção. Sem esquecer que a palavra ficção, se formos rigorosos, tem sentido paradoxal: o de fiar, produzir uma fibra, um tecido de qualquer natureza, e também o de inventar, fingir.

A mescla da memória não acontece apenas na instauração dessa temporalidade ambígua, mas também na fricção entre o criado e o vivido. Neste conto, Fabrício toma as vezes de Fausto Cupertino, jornalista e ex-marido de Vilma, e o acontecimento narrado no conto ecoa o que foi experienciado pelo casal.

Arêas foi expulsa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) durante a ditadura e foi detida. Fausto, seu marido, foi preso, torturado e morreu anos depois, em decorrência da brutalidade vivida. Durante os anos de governo bolsonarista e a ressurgimento dos discursos militaristas e ditatoriais no espaço público, Vilma escreveu sobre a prisão política de Fausto/Fabrício e as (im)possibilidades de nutrir esse afeto por Tigrão nos anos vindouros.

Outros contos, como Thereza, que abre a coletânea Vento sul, também dialogam com as memórias e vivências da escritora. Como explicou Vilma Arêas em uma entrevista ao Rascunho, esta é uma narrativa em referência direta à avó Thereza “que sustentava a casa com o produto das bananeiras que plantava, ficava desesperada e podia farejar o vento sul antes que ele começasse a soprar. Cresci ouvindo falar desse vento, acho que ele virou uma espécie de madeleine, trazendo o tempo passado”. República velha, outro conto na coletânea, também surge de uma anedota sobre um caso de adultério, deslocada para outra temporalidade e com uma conclusão arrebatadora: “Puta por puta, fico com ela, que já estou acostumado”, diz o protagonista do conto.

Nem todos os contos que surgem da imbricação têm o mesmo peso histórico. Como se fosse eu, conto de Um beijo por mês e que também integra a seleção de Eliane Robert Moraes para o livro O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022), é fruto de uma ida corriqueira ao oftalmologista. Com a vista dilatada, Vilma precisa pegar um táxi para casa e desenvolve um breve relacionamento afetivo com seu motorista.

Quando a escritora e o taxista se encontram, ele sugere que ela o acompanhe no banco da frente. Vislumbrando uma curiosa sombra de cabeleira grisalha parecida com o personagem Obelix, ela aceita. Durante o caminho, eles conversam. Ele pergunta se Vilma vai ao cinema, com o que trabalha, do que gosta… até que a “a ficha cai” e a narradora, sem rodeios, pergunta: “Você está me cantando?”.

Com a resposta afirmativa, Vilma desconversa. Diz que não pode ser, que não vive mais romances, é velha e tem 80 anos. Mas ele, coincidentemente, também. Foi casado por 50 anos, mas enviuvou. Inesperadamente, encontrou a esposa morta em casa, passou por um período intenso de luto e, agora, sentia-se pronto para tentar de novo. Como tinha gostado dela, queria uma chance para conhecê-la.

Nada feito. A única concessão foi um beijo no final da corrida, depois do pagamento. “Pensei que seria um beijo protocolar”, escreveu Vilma, “mas ele me deu uma agarrada e um beijo de verdade”. A grande surpresa é que o beijo era bom. Por isso, ela propõe: “Topa um beijo por mês?”. O taxista, desolado, não aceita: “Um beijo por mês! Assim não é possível!”. Os dois se separam.

Cotidiano e experimentalismo
Muitos contos de Arêas são construídos dessa forma, pautados por situações corriqueiras e permeados pelo que o crítico Schneider Carpegiani descreveu em uma resenha para a revista 451 como “big bangs do cotidiano”. É um movimento como composto por duas forças complementares: sua prosa é precisa e breve — poucos são os contos que se alongam pelas páginas e, durante a leitura, muitas vezes recordei do Manual da faxineira, de Lucia Berlin — mas com uma tensão simbólica unida à concisão, exigindo do leitor um trabalho mais intenso de construção dos sentidos.

Em A dialética dos vampiros, acompanhamos uma mulher e seu filho assistindo a uma série de caça-vampiros na televisão depois do jantar. A discussão entre os dois personagens sobre a narrativa audiovisual é um retrato cotidiano, casual, que carrega em suas entrelinhas uma discussão mais profunda sobre a própria natureza da arte — até um final que estica e experimenta com os limites da própria linguagem literária.

Outras narrativas apresentam esse experimentalismo estético com mais intensidade, como as que absorvem a confusão da estruturação onírica. A coletânea A terceira perna, intitulada em referência a Brecht, é permeada de narradores imprecisos — até mesmo não humanos — e diálogos com outros autores, como os ratos de Dyonélio Machado e os felinos de Cortázar. Em Partidas, prólogo e epílogo se organizam em listas e citações, enquanto os outros 26 capítulos são organizados pelas letras do alfabeto.

A ficção de Arêas escapa às classificações mais simplórias do que é um conto. Em Trouxa frouxa, escreve uma série de contos curtos intitulados Cromo, que são descrições quase corriqueiras de paisagens. Por diversas vezes, Vilma também lança mão de uma intertextualidade conceitual e indireta, mas sem transformar em uma obra hermética, distante dos que não compartilham do repertório cultural da autora. Instantâneo da desmedida é um conto dividido em duas partes, refletindo sobre a produção da artista Rochelle Costi, Desmedida. Bocetinhas de Picasso, Vestidos de Palha, Godard e Maurício Segall são outros contos que promovem esse entrelaçamento entre linguagens.

Outro dos temas entrevistos em Tigrão e presente na prosa de Vilma é a crítica social que permeia seus escritos. Em Um beijo por mês, uma série de contos intitulados Instantâneos descreve três fotografias e uma charge divulgadas pela imprensa, denunciando problemas de moradia, violência policial, desigualdade social e fome. Estrela do mar e Alma, que integram o conjunto de Tigrão, tratam da violência contra a mulher, enquanto Ponto de mira e O anjo evidenciam uma hipocrisia — e até mesmo uma certa ingenuidade — que permeiam uma parcela da classe média brasileira. Já A terceira perna tem contos como Quadrilha, Projeto Rondon e Rosa-chá, que evidenciam problemas econômicos e educacionais vividos no cotidiano brasileiro.

Infância
Parte da questão poética e do cotidiano que Vilma constrói passa pela esfera da infância e certo maravilhamento com o mundo e a linguagem. Crianças são protagonistas bastante frequentes. Vilma Arêas muitas vezes disseca o desabrochar de sentimentos, a mudança nas relações entre amigos e familiares, a ingenuidade e a brincadeira — às vezes, em paralelos com o próprio ato de criação poética.

Aos trancos e relâmpagos é a única narrativa de ficção longa que compõe o volume. Aqui, acompanhamos Verônica, uma criança prestes a entrar na puberdade e descobrindo como lidar com as mudanças que entram na sua rotina. A primeira esfera que se altera envolve o relacionamento dela com Teo, seu tio preferido, que começa um namoro sério destinado ao casamento. Essa pequena faísca de ciúmes modifica a dinâmica entre os diversos parentes que moram na mesma casa.

Verônica também tem um irmão mais novo, Chico, e um de seus amigos, Alexandre, passa a flertar & discutir poesia e literatura com ela. O Grande, como é conhecido, é bem mais velho que os dois e está às portas do vestibular, com o intuito de se tornar um crítico literário. O laço entre o trio é formado por uma dinâmica não só de aproximação entre Alexandre e Verônica, mas pelas interpretações que ambos têm dos textos que Chico escreve para a escola.

Enquanto se desenrola a narrativa, vemos as alterações no mundo infantil: amigos imaginários se tornam menos presentes, histórias de faz-de-conta nas rachaduras das paredes enfraquecem, o luto pela avó falecida encontra vazão e Verônica começa um caminho para compreender as próprias emoções. Em um determinado trecho, ela discorre sobre a raiva e o arrependimento:

O que mais me chateia na raiva é que sei, por experiência, que ela passa. A raiva, sim, é um pássaro selvagem: você tenta amansar, ganhar confiança, mas quando menos se espera ele bate as asas e foge. A gente fica com uma fraqueza no peito, no corpo todo, como depois de uma febre. Querendo colo. Mas o pior é o período antes dessa fraqueza, todo mundo com os nervos inflamados, à flor da pele.

Todos juntos (1976-2023)
Vilma Arêas
Fósforo
560 págs.
Vilma Arêas
Nasceu em Campos de Goytacazes (RJ), em 1936. Entre seus trabalhos de não-ficção estão Na tapera de Santa Cruz (Martins Fontes, 1987) e Clarice Lispector com a ponta dos dedos (Companhia das Letras, 2005). Todos Juntos (1976-2023) (Fósforo, 2023) é composta pelas sete obras de ficção da autora: Tigrão (2023), Um beijo por mês (2018), Vento sul (2011), Trouxa frouxa (2000), A terceira perna (1992), Aos trancos e relâmpagos (1988) e Partidas (1976). Vilma venceu três vezes o Prêmio Jabuti.
Arthur Marchetto

É doutorando em Comunicação Social, com pesquisa sobre crítica literária na Universidade Metodista.

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