Um aparente beco sem saída. É essa a situação que se insinua para Ricardo Luiz Menezes no romance O ponto da partida, de Fernando Molica. Ricardo é o personagem central, tem 50 anos e está em crise: sem perspectivas de futuro, a recordar o passado e a maldizer o presente. Ele é jornalista, trabalha em jornal diário e não encontra mais sentido na profissão. Separado, tem dois filhos e mora sozinho em um pequeno apartamento no Leblon, zona sul do Rio de Janeiro. Apesar de ser apontado como um competente profissional de comunicação, não consegue se comunicar com os integrantes de sua família:
Há trinta anos que não faço outra coisa que não seja contar histórias, relatar fatos, costurar episódios, dar voz a entrevistados. E há trinta anos que vivo disso, só disso. Até por paulista eu sou compreendido, até aqueles sujeitos lêem minhas matérias, me elogiam, mandam cartas simpáticas para os jornais. Meus amigos gostam do que eu produzo, pelo menos dizem que gostam. Filhos de meus amigos falam o mesmo, que sou legal, que tenho uma maneira legal de ver os fatos, de contar uma história. Um deles disse que deve ser bom ser meu filho. Coitado. Pois é. Só não sou lido por quem me interessa. Que merda.
O calendário do protagonista é marcado pelo almoço semanal com os filhos, Carlos e Caroline. Cada encontro é praticamente igual: troca de monólogos e nenhuma interlocução — batalhas verbais. Ao final de cada um dessas refeições sociais, Ricardo começa a fazer a contagem regressiva rumo à próxima inevitável, indesejável e constrangedora reunião familiar. Entre um encontro desses e o seguinte, ele vive a sua rotina de jornalista. E, talvez devido a esse mal-estar, o personagem reflete sobre a existência e elabora observações ácidas a respeito da profissão. Da mesma maneira que em Dom Casmurro a imagem de Capitu é construída pelo olhar desiludido e amargurado de Bentinho, em O ponto da partida as constatações a respeito do jornalismo, e dos jornalistas, surgem a partir do ponto de vista de um desesperançado Ricardo. Não se trata de um monumental painel sobre o jornalismo, como fez Balzac em Ilusões perdidas, nem de furioso acerto de contas com os desafetos como fizeram Lima Barreto, em Recordações do escrivão Isaías Caminha, e Mino Carta, em O castelo de âmbar. No romance de Fernando Molica a crítica ao jornalismo é diferente.
O jornalista Ricardo Luiz Menezes, que foi jovem durante o período da ditadura militar, não aceita os jovens jornalistas que atualmente trabalham nas redações. Ele é de uma geração tida como politizada e leitora, que gerou jornalistas que exerciam a profissão muitas vezes sem ter o diploma, diferente do que acontece hoje. O protagonista, fã de Nelson Cavaquinho e de outros compositores, fica indignado quando avisa ao jovem editor do caderno de cultura que Guilherme de Brito morreu e, como resposta, é informado de que o jornal vai publicar apenas uma notinha sobre o fato. Ricardo dá a entender que os jornalistas de hoje são, por exemplo, mais superficiais, conformados e medíocres que os de ontem.
Em um primeiro momento, o ponto de vista do protagonista se aproxima do de veteranos que idealizam o passado, e continuamente repetem que antes tudo era melhor, quando na maioria das vezes o que acontece é apenas nostalgia da própria juventude. Afinal, hoje o jornalismo é mais profissional, investigativo e bem escrito do que em todo o passado da imprensa brasileira. (Há quatro anos, entrevistei uma jornalista veterana aqui da província — um medalhão de saias — que sentenciava que o jornalismo havia acabado, quando na realidade o que havia terminado era a juventude dela, nada mais que isso).
Mas, ao invés de idealizar o jornalismo de sua juventude, Ricardo tem saudade de algo que não viveu: a imprensa da primeira metade do século 20, traduzida no personagem João Carniça. Carniça representa o anti-herói, um jornalista que sabia apurar fatos mas que não conseguia redigir um texto. Ricardo, então, está na cena de um crime, diante de um cadáver, durante uma madrugada que demora a passar e, para fugir do presente, busca na memória episódios que escutou a respeito do lendário Carniça, o repórter figuraça — personagem de um momento romântico da imprensa brasileira e que, para o protagonista de O ponto da partida, representa aquilo que seria o jornalista ideal.
Ricardo entrou no jornalismo devido à influência de seu pai, Mário Menezes, que morreu súbita e precocemente em cima da máquina de escrever na redação de um jornal. O pai do protagonista era um sujeito que gostava e tinha fé no jornalismo e, entre idéias inusitadas, comparava um editor de jornal a Deus:
Fazer jornal, meu filho, é brincar um pouco de ser Deus. A gente é que decide o que é importante. Só é importante o que sai no jornal. Não adianta Deus fazer e acontecer, criar o dia e a noite, macho e fêmea, as estrelas, o Himalaia, o Garrincha, o cacete a quatro: se não saísse no jornal, ninguém ficaria sabendo. Por isso, Ele também criou a Bíblia, o jornal Dele. A Bíblia é igualzinha a um jornal, é cheia de histórias, a maioria, difícil de ser checada. […] Por isso que eu digo: a Bíblia é igualzinha a um jornal. A diferença, no duro, é que todo editor acha que é Deus; no caso da Bíblia, o cara era Deus mesmo.
O ponto da partida, apesar do texto ágil que entrelaça a trajetória do protagonista com pontos de vista sobre o jornalismo, dá a impressão de que vai terminar como começou: apenas com o olhar de Ricardo (e, se isso acontecesse, o livro poderia ser adjetivado de previsível, talvez frustrante). Mas, nas últimas páginas, a narrativa surpreende. Um incidente (que não pode ser mencionado na resenha para provocar o eventual leitor a, de fato, ler o livro) coloca o protagonista cara a cara com a ex-mulher. E, então, ela relativiza Ricardo. As opiniões do personagem central, por exemplo, a respeito de seus filhos, repetidas ao longo do livro, são desconstruídas. E há outras desconstruções (que, propositalmente, não serão comentadas na resenha).
Aquela madrugada que Ricardo ficou diante de um cadáver se transforma em manhã e ele segue para o seu apartamento. O livro vai terminar. O protagonista se transforma. De pai ausente se tornará avô — a filha está grávida. E, diante da oportunidade de fazer uma grande reportagem, ele pede um dia de folga. Por um dia, ao menos (ou talvez durante todo o porvir), não pretende mais entrevistar ninguém. “A vida, também, está fora das redações”, poderia ter dito João Carniça, e parece ser o que se abre no imaginário do protagonista. Balas perdidas, da Rocinha, ou do Vidigal, ameaçam a vida de quem, como ele, caminha pela zona sul. Mas, apesar do risco, Ricardo caminha: é o ponto da partida.
Ao som dos tiros, dos gritos dos que fugiam, Ricardo descobria que sua própria vida, assim como a da cidade, também não resistira a tantos ataques, frustrações e tensões. O dique se rompera. […] O fim chegara e ele perdera.