As heranças do medo

Romance de Ronaldo Wrobel busca formas humanas de se lidar com as misérias do mal
Ronaldo Wrobel, autor de O romance inacabado de Sofia Stern.
28/09/2016

Um aparente surto de caduquice faz desaparecer da casa onde mora, na rua Cinco de Julho, em Copacabana, Sofia Stern, a avó de Ronaldo. Depois de peregrinar pela noite, pelos pontos boêmios do bairro, o neto encontra a vetusta senhora a cantar clássicos do cancioneiro americano dos anos 1930 em um cabaré. Passado o susto, e depois de recolher algumas joias distribuídas por ela às prostitutas, o moço começa a colecionar novas e surpreendentes aventuras desta nem sempre pacata e inocente avozinha.

O enredo certamente é o ponto mais forte e intrigante do novo livro de Ronaldo Wrobel, O romance inacabado de Sofia Stern. Numa trama que resgata todas as qualidades de um clima noir, o escritor coloca o leitor diante de uma geração marcada pelo recrudescimento ideológico sofrido pela Alemanha das décadas de 30 e 40 do século passado. O pesado clima de fermentação do nazismo e todas as suas consequências são largamente trabalhados aqui, mas a política é o que menos importa. Suas buscas são pelas formas humanas de se lidar com as misérias do mal.

Para chegar a esta sutileza narrativa, Wrobel, esmerando-se no ofício de narrador de suspense, imbrica tramas e aventuras. Em dado momento o leitor tem mais perguntas que respostas sobre as vidas daqueles personagens. Quem realmente é ou foi Sofia? O que a fez vir parar no Rio de janeiro? O que a levou a casar com um homem absolutamente comum e até medíocre? Qual a importância da amiga Klara, que não era judia, em sua existência? E suas seduções? Seu reconhecido talento artístico a fez sobreviver? Por que guardou tais talentos ao desembarcar na América? Quais caminhos trilhou para cultivar suas paixões e ódios pelo enigmático Hugo, o irmão de Klara?

O romance, enfim, é todo um cipoal de enigmas que, desvendado, poderá levar à posse de uma fortuna esquecida em um banco alemão. Como toda esta fortuna é literária, Ronaldo não se furta a ir paulatinamente oferecendo pistas e dados para a construção de um quebra-cabeça perfeito. Mesmo uma leitura atenta talvez não encontre pontas soltas, linhas criadas somente para desviar a atenção do leitor. Ficção de dois mundos — o Brasil de 2013 e a Alemanha dos anos 1930 — O romance inacabado de Sofia Stern reconstitui épocas com o compromisso de jogar o leitor dentro de um tempo de institucionalização do terror.

Naturalmente que neste ambiente a perseguição aos judeus surge como ponto primordial. Aliás, o protesto ao antissemitismo do regime nazista é uma marca da literatura de Ronaldo Wrobel. No romance Traduzindo Hannah o terror está do lado de lá e de cá do Atlântico. Durante a ditadura de um Getúlio Vargas namorado do totalitarismo, um pobre sapateiro é obrigado a traduzir cartas quase inocentes para condenar uma indefesa judia. Tanto lá quanto cá, tanto na Alemanha quanto no Brasil, a fragilidade do objeto vida era a única certeza.

Ficção de dois mundos — o Brasil de 2013 e a Alemanha dos anos 1930 — O romance inacabado de Sofia Stern reconstitui épocas com o compromisso de jogar o leitor dentro de um tempo de institucionalização do terror.

Lembrança do pavor
Neste novo tempo de que fala Wrobel os dois mundos respiram liberdades e conceitos sólidos de justiça, mas a lembrança do pavor gera o medo. Sofia ainda se esconde, foge e até renega seu passado como uma maneira de proteger o que lhe resta de vida e aventura. Sequer a possibilidade da riqueza, da fortuna esquecida no banco, parece encantá-la. Que tanto mal esconde este passado? Esta é a pergunta que o enredo tenta responde. No entanto a preocupação maior do autor é trazer de volta as lições da história. Os medos de Sofia nos alertam para a possibilidade do retorno da dor.

Voltando ao debate mais profundamente literário, Ronaldo oferece o próprio nome ao personagem. Este truque não é nenhuma novidade, mas recentemente vem encantando autores como Marcelo Mirisola e Ricardo Lísias. Paradoxalmente, esta aproximação do escritor como o personagem cria uma sensação de impessoalidade. Os protagonistas são Ronaldos, Marcelos e Ricardos, como poderiam ser Joões, Pedros, Manuéis, pouco importa. O uso do próprio nome pelos autores mais parece somente uma tentativa vã de fuga de uma neurose moderna. Diante do intenso individualismo atual cada um, apenas por coincidentemente ter o mesmo nome de um personagem ficcional, já se sentir retratado em todas as características mais íntimas. Destarte, fundamental é a trajetória que representam os personagens e a intensidade que imprimem ao pedaço de vida que retratam.

No caso do romance em questão, mais vale o profundo verniz cultural com que Wrobel doura seu texto. De início é necessário que se diga que não há aqui nada de arrogância, daquela função vazia de mostrar o quanto se leu e pesquisou para a formatação do texto. Tudo surge como reconstrução de uma época de felicidades, de intensidade cultural que foi abortada pelo terror. E este tempo está pintado com maestria nas páginas do romance.

O rebuscamento, os malabarismos verbais pouco encantam Ronaldo Wrobel. Seu texto é claro, límpido, de frases breves e precisas. Um texto que se lê com certo vagar, mas que o enredo bem construído e até certo ponto complexo constantemente puxa a atenção do leitor.

Um romance complexo em sua concepção, mas profundamente agradável e instrutivo em sua construção. É preciso um conhecimento descomunal para apontar as ações do futuro, mas, pelas suas tantas qualidades, O romance inacabado de Sofia Stern nasce como uma promessa de permanência.

O romance inacabado de Sofia Stern
Ronaldo Wrobel
Record
356 págs.
Ronaldo Wrobel
Nasceu em 1968 no Rio de Janeiro (RJ). É escritor e advogado. Tem cinco livros publicados: três romances, um volume de contos e uma obra infantojuvenil. Lançado em oito países, seu romance Traduzindo Hannah (2010) foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria melhor livro do ano.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho