As fotos das grafias

Resenha do livro "Daguerreótipos", de Marcus Accioly
Marcus Accioly, autor de “Daguerreótipos”
01/09/2009

Num texto de 1943, em que analisava as estréias literárias de Rui Guilherme Barata e João Cabral de Melo Neto, Antonio Candido observou que a literatura permanecia como principal fonte de expressão intelectual no Norte do País, enquanto entre os sulistas grassava a onda ensaística de variadas orientações críticas.

Passados mais de sessenta anos da constatação, interessa notar como a literatura nortista, no geral e em feitos consideráveis, não se entusiasmou pela tendência experimentalista tão alastrada no cenário artístico do Sul. É o que se vê, por exemplo, nos romances de Milton Hatoum, nos contos de Ronaldo Correia de Brito, na poesia de Daniel Mazza e também na de Marcus Accioly, que nos manda de Pernambuco Daguerreótipos, seu mais novo volume de poesia.

O livro, composto por 165 poemas, apresenta sólida unidade temática e formal, visto que todos os textos são sonetos, e apenas dois (o primeiro, a tratar do daguerreótipo, e o último, a falar sobre o próprio soneto) não funcionam como fotografias de personalidades da cultura mundial.

Tais personalidades — todas já falecidas, ou encantadas, como diria Guimarães Rosa — são em maioria literárias, de Casimiro de Abreu até Homero, passando por famigerados, como Goethe e Flaubert, e anônimos como o inglês Tomas Chatterton, morto aos dezessete anos de idade: “Quase inédito e póstumo no mundo,/ foi do leito do olvido, aberto e fundo,/ que a morte deu à vida tuas páginas”, diz 140º (os poemas são intitulados a partir da ordem em que se apresentam, com o nome do “fotografado” posto ao final do texto, sendo que o primeiro chama-se 0º e o último recebe o símbolo do infinito: ∞).

A referida unidade do livro termina por lhe gerar um paradoxo, pois se torna a virtude e o vício de Daguerreótipos. Se por um lado a familiaridade apresentada pelos textos forma de fato um livro, sem a aparência de uma mera coletânea de escritos dispersos, por outro será possível perceber sinais de certo desgaste da fórmula do “soneto-retrato”, seja por haver alguns poemas em que o sujeito lírico forja “conversas” com os “retratados” que são mais descritivas do que dialógicas, seja pelos momentos em que a obrigatoriedade da forma leva o poeta a submeter-se a lances infelizes, como na rima entre “logo” e “fogo”, no poema 29º, consagrado a Nelson Rodrigues:

Se acendes um cigarro — como Augusto
dos Anjos — teu teatro (o grande susto
que não se quer tomar) queima-se logo.
Foge a platéia e atores dos teus dramas
e, mariposa acesa pelas chamas
— qual Jean Cocteau — salvas o fogo.

Mas esses lances são raros, e não turvam o brilho do livro, nem da competência técnica de Marcus Accioly, já comprovada em Sísifo (1976) e Latinomérica (2001), e que ganha ainda mais envergadura quando associada a imagens bastante vigorosas: “Ó Fagundes Varela, não importa/ saber, durante o curto itinerário/ da tua vida, o sofrimento vário,/ porém aquele que aos demais comporta.// A desgraça — esse agente funerário —/ viu teu anjo e bateu à tua porta:/ ‘Venho ditar a viva canção morta/ — o Cântico (da cruz) do (teu) calvário’”.

Outro motor expressivo de Daguerreótipos é colocar lado a lado personalidades estrangeiras eruditas — Nietzsche —, ícones da cultura de massa — Marilyn Monroe —, personagens da História — Ernesto (Che) Guevara — e figuras do imaginário nordestino brasileiro, como Lampião e Luiz Gonzaga. Sobre este, diz o poema 28º: “e de casa fugiu e se escondeu,/ não sob o acordeom, dentro da música.// Mas, em vez de gemer ou de chorar/ qual criança que nasce, renasceu/ de outra vagina — a boca — e foi cantar”.

O vasto mosaico de Accioly é mais um desses feitos que dão continuidade ao que de melhor produziram os poetas brasileiros do século 20, cujas maiores conquistas têm, atualmente, sido postas de lado em favor da linguagem reclusa e de uma estéril, porque excessiva, metapoesia. Pertencente de uma linhagem clássica, Daguerreótipos, de Marcus Accioly, copia as fotografias para manter o inesgotável exercício de reinvenção da poesia, que por sua vez reinventa vida, de inúmeras faces e grafias.

Daguerreótipos
Marcus Accioly
Escrituras
222 págs.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho